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Sobre a necessidade da criação da categoria “Arte de Contar Histórias” dentro de editais de subvenção à Cultura

voltar às notícias 6 de junho de 2019

Sobre a necessidade da criação da categoria “Arte de Contar Histórias” dentro de editais de subvenção à Cultura

O contador de histórias

“é aquele ou aquela que narra, com uma cor de palavra única, histórias verdadeiras, fictícias ou simbólicas, que constrói para si mesmo um repertório original, fruto de esforços e pesquisas pessoais, que fala e se apresenta para seu auditório em seu próprio nome e não em nome de um personagem-narrador, e conduz essa prática como Arte.” (Carta Nacional dos Contadores de Histórias – Associação Nacional dos Contadores na França – ANCEF, Nov. 2003).

No prefácio de Fábulas Italianas, Italo Calvino falou da infinita variedade e infinita repetição dos contos tradicionais. Essa mesma dupla qualidade pode ser observada com relação à função social do contador de histórias, cuja presença em todas as culturas tradicionais atesta a situação narrativa como fato social significativo de encontro entre pessoas por meio do relato oral. Tal situação é um dos modos instituídos que as culturas têm de compartilhar, preservar e difundir conhecimentos configurados simbolicamente em estruturas narrativas, o que se repete e varia infinitamente ao longo da história da humanidade.

Por isso a  diversidade de funções do contador de histórias manifesta-se em muitos estilos e tipos de atuação. O contador de histórias nem sempre teve esse nome.  Sua função social pode ser tão informal quanto a das escravas amas de leite que contavam histórias para os filhos dos seus senhores no Brasil colonial. E, no outro extremo, pode ser tão especializada quanto a de narradores japoneses, que no século XX ainda apresentavam epopeias em casas de chá, seguindo rigorosamente técnicas milenares aprendidas durante anos ao longo de sua vida. Em algumas culturas de tradição oral do oeste africano, por exemplo, os DJELIS, denominados GRIOTS pelos ocidentais, constituem uma casta cuja função social é a de guardar na memória e transmitir por meio da palavra oral as genealogias das famílias, os fatos históricos e os contos de ensinamento, além de serem eles os responsáveis pelas festas da comunidade. Os DJELIS são artistas completos.

No Brasil agrário havia contadores de histórias itinerantes, que viajavam com seus causos e contos populares, tendo muitas vezes figurado como personagens encantadores em obras de alguns de nossos romancistas. O Alexandre de Graciliano Ramos, a velha Totonha de José Lins do Rego, a Joana Xaviel e o velho Camilo de Guimarães Rosa são exemplos marcantes da presença de contadores de histórias tradicionais na literatura brasileira.

Desde o começo do mundo, a função narrativa dos relatos orais tem sido  exercida por bobos da corte, xamãs, bardos, viajantes, tecelãs, jograis, mestres, avós, professoras, marinheiros, pastores, também pelos “mais velhos” do grupo social, assim  como contadores “artistas da palavra”, tendo seu saber reconhecido como tal pela comunidade.

Até o advento da sociedade ocidental moderna, o contador de histórias sempre teve este reconhecimento atuando nas festas, depois das colheitas, em praças, casas de chá, em volta das  fogueiras, nos templos ou sob as árvores de palavras. Por meio da presença de sua memória, de sua voz e técnicas expressivas, os conteúdos simbólicos, encadeados na sequência narrativa dos contos, mitos, lendas e epopeias, eram vividos pelos ouvintes como uma experiência de aprendizagem de si mesmos, de suas relações com os outros e com os mundos internos e externos que organizam e conferem sentido a existência humana.

Hoje a indústria do entretenimento comanda o mundo barulhento da quantidade de informações e estímulos sensoriais, que tende a dificultar o encontro, a comunicação viva e a qualidade de desafios perceptivos que os relatos tradicionais oferecem às pessoas no silêncio de sua escuta.

Nesse novo contexto, os contadores de histórias atuais querem se reinventar.

A arte de contar histórias vem renascendo nos grandes centros urbanos do mundo, desafiando as hipóteses sociológicas que previram sua extinção por suporem sua inadequação aos avanços tecnológicos da sociedade contemporânea.

Durante a década de setenta do século XX, em vários países ocidentais, iniciou-se simultaneamente, sem que as pessoas tivessem conhecimento das pesquisas umas das outras, um ressurgimento da arte de contar histórias abrangendo tanto a revalorização do contador tradicional como o surgimento de novas formas urbanas de narração oral. Desde então o número de contadores vem crescendo muito nas últimas décadas.

Durante o século passado, antes desse renascimento,  a arte de contar histórias situava-se mais nas escolas e bibliotecas, aos poucos foi se enraizando em instituições culturais e hoje, não apenas no Brasil, os contadores de histórias ocupam salas de espetáculos e teatros, narrando para públicos de crianças e adultos. Mais recentemente sua ação tem ganhado espaços de urgências como hospitais, abrigos, centros para recuperação de dependentes de drogas e muitos outros lugares.

Por toda parte há contadores de histórias que buscam as especificidades de seu ofício enquanto linguagem  artística, propostas estéticas e funções sociais e culturais no mundo de hoje:

– Qual seu lugar no universo das artes? Quais os âmbitos de sua atuação profissional? Quais suas possibilidades de formação?  Quais os parâmetros que possam definir sua ação particular, que justifiquem e possam delimitar um contexto de atuação que envolve pesquisa, fundamentos, formas artísticas, técnicas e repertórios?

Discussões sobre o que define o artista contador de histórias são muito comuns na atualidade e há inúmeras formulações que ora buscam distingui-lo do ator de teatro, ora afirmam que não é importante estabelecer diferenças entre os dois.

Por trás dessas argumentações há a necessidade de encontrar um lugar específico, profissional e estético, para uma arte que tem se espalhado pelos ambientes urbanos e busca afirmar sua autonomia porque há públicos cada vez maiores que querem escutar histórias.

Os contadores de histórias têm sido constantemente forçados a se adaptar e se submeter a critérios pertinentes a outras linguagens artísticas que compõem os editais de fomento e órgãos de subvenção, por não haver uma categoria específica elaborada para sua ação artística.

Especificidades como: cenário, iluminação, apresentação de um texto no formato teatral, e outros recursos de encenação próprios das artes cênicas nem sempre são imperativos no trabalho do contador de histórias, que às vezes acaba acoplando tais elementos ao seu trabalho para ser reconhecido no mercado cultural. Sua criação pode por isso submeter-se a uma forma e uma roupagem que nem sempre representam o que é essencial na sua arte, o que pode comprometer sua identidade enquanto tal.

Se tomarmos como exemplo a categoria Artes Integradas, fruto das tendências estéticas contemporâneas, é importante perceber que tal categoria não é útil para expressar a especificidade da Arte de Contar Histórias, porque a descaracteriza.

Com as artes já reconhecidas, como a dança, para citar um exemplo, não há problema: a dança pode ser uma manifestação de artes integradas, mas é claro que o ponto de partida do trabalho proposto é o movimento corporal em diálogo com outras linguagens artísticas. Do mesmo modo, a Arte de Contar Histórias também poderia se manifestar dentro dessa categoria se já houvesse clareza e consenso quanto à sua especificidade.

Seu ponto de partida e centro de aglutinação de sua pesquisa é a Arte da Palavra Oral enquanto campo de investigação e prática artística. Por isso o contador de histórias

“é aquele ou aquela que narra, com uma cor de palavra única, histórias verdadeiras, fictícias ou simbólicas, que constrói para si mesmo um repertório original, fruto de esforços e pesquisas pessoais, que fala e se apresenta para seu auditório em seu próprio nome e não em nome de um personagem-narrador, e conduz essa prática como Arte.” (Carta Nacional dos Contadores de Histórias – Associação Nacional dos Contadores na França – ANCEF, Nov. 2003).

Para que esta forma artística ganhe seu espaço próprio melhor seria então pensar na criação de uma categoria dentro das Artes Cênicas. Além de Teatro, Dança e Circo, poderia haver também: Arte de Contar Histórias, englobando projetos cujo foco central seja a palavra narrada oralmente como fio condutor de propostas artísticas e estéticas que podem se manifestar seja como Narração Oral enquanto tal, seja em diálogo integrado com outras linguagens.

A Arte de contar histórias, enquanto categoria para a inscrição de projetos, pode incluir conteúdos de diversas linguagens afins, tais como:

– Literatura:

  • Produção de livros, DVD,s, CD´s e Audiobooks, tendo como foco narrativas de tradição oral;
  • Obras de pesquisa e fundamentos da Arte de contar histórias.

– Performance:

  • Narração para adultos e crianças nos mais diversos espaços;
  • Espetáculos de Narração em espaços teatrais e outros espaços urbanos.

– Educação:

  • Atuação em escolas e instituições com caráter formativo.

– Bibliotecas:

  • Projetos que relacionem a arte narrativa com ações de leitura e a ressignificação do espaço das bibliotecas.

– Área da Saúde:

  • Projetos ligados a hospitais e outras instituições voltadas para a saúde física e mental.

– Instituições culturais:

  • Narração de histórias em Casas de Cultura, Teatros e outros pontos de fomento cultural.

– Artes integradas:

  • Narração de histórias em lugares específicos (site specific), com destaque para o espaço público dialogando com os elementos culturais e estéticos desses lugares, valendo-se de outras linguagens artísticas como a dança ou as artes visuais.
  • Uso de recursos audiovisuais que acompanham e complementam a performance do contador, seja para o registro ou proliferação das histórias.

– Ações sociais e comunitárias:

  • Atuação em saraus, festas e outras ações em comunidades;
  • Narrações de histórias em abrigos, albergues, casas de convivência e outros espaços que atendem pessoas em situação de vulnerabilidade social.

 

Regina Machado