Dizem que há pessoas que são verdadeiras bibliotecas, que contêm em si tantas histórias que é como se não fossem mais apenas um indivíduo, mas milhares de seres humanos. Os grandes contadores de histórias são assim; quando começam a falar trazem todos os seres que vieram antes deles: seus pais, seus avós, seus companheiros, todos os ancestrais, todos os que já passaram por este mundo antes.
Impossível esquecer-se da tarde de 14/05/2014. No encontro de Sabenças afro-brasileiras, Dona Cici contou, cantou e dançou histórias de orixás. Quem passa pela experiência de conhecê-la nunca mais será o mesmo.
14 horas. Entramos na sala, cuidadosamente preparada. Ao entrar, deparamo-nos com um silêncio reinante e o ruído alto de fora foi, aos poucos, sumindo. O músico Sérgio Pererê, cuja obra mantém contato íntimo com a cultura afro-brasileira, nos presenteou com uma belíssima canção, que nos trouxe a dimensão do sagrado e restaurou o silêncio no ambiente.
Nesse momento, Carolina Cunha agradeceu a Ifá, que permitiu que o destino nos reunisse naquela sala, naquele prédio, naquela cidade de encontros que é São Paulo. Em seguida, apresentou Dona Cici.
Nanci de Souza Silva, mais conhecida como ebomi Cici de Oxalá, nasceu no Rio de Janeiro em 02 de novembro de 1939. Foi iniciada no culto dos Orixás em Salvador, em 1972, porém já vivia dentro dos terreiros candomblé desde os 18 anos. Trabalhou durante muito tempo com adolescentes em uma antiga escola normal do Rio de Janeiro. Trabalhou muitos anos com o babalaô, antropólogo e fotógrafo Pierre Verger, fazendo legenda para 11 mil fotografias ligadas à cultura afro-brasileira e a Benin, Togo, Gana, Nigéria e África do Norte.
Atualmente trabalha no Espaço Cultural Pierre Verger com crianças em situação de alto risco e com pesquisadores da cultura afro-brasileira. Afetuosamente chamada de Dona Cici ou Vovó Cici pelas crianças com as quais trabalha, já se apresentou em diversas cidades brasileiras e também fora do Brasil, como em Cuba, França e nos Estados Unidos, sendo Cuba o lugar em que mais se emocionou, pois foi onde ela viu a Bahia de novo.
Grande devota de Ibeji, é uma pessoa que acredita nas forças da natureza divina e terrena e que tem uma profunda fé na humanidade. Calma e lúcida, ela nos banha com sua sabedoria e extrema sensibilidade e nos ensina a elegância da simplicidade, cobrindo-nos com grande pano de paz da família de Obatalá.
Dona Cici iniciou sua fala saudando todos seus ancestrais e os ancestrais de todas as pessoas presentes. Saudou ainda aqueles lhe ensinaram as histórias que conhece. Ela nos disse que gosta de contar histórias de orixás e de animais e leu um texto sobre os orixás:
Um babalaô me contou. Antigamente os orixás eram homens, homens que se tornaram orixás por causa de seus poderes, homens que se tornaram orixás por causa da sua sabedoria. Eles eram respeitados por causa da sua força, eles eram venerados por causa das suas virtudes. Nós adoramos sua memória e os altos feitos que realizaram. Foram assim que esses homens se tornaram orixás.
Os homens eram numerosos sobre a terra. Antigamente, como hoje, muitos deles não eram valentes nem sábios. A memória destes não se perpetuou, eles foram completamente esquecidos, não se tornaram orixás.
Em cada vila, um conto se estabelecia sobre a lembrança de um ancestral de prestígio; as lendas foram transmitidas de geração em geração para render-lhes homenagem.
Então, Dona Cici cantou e tocou uma cantiga, explicando-nos que era um ritmo sagrado de Xangô. Depois explicou que a música dizia: “Me dê licença para entrar nessa casa” e que a resposta ela mesmo deu: “Entre rápido”.
Logo em seguida, ela começou a falar sobre a cisma que as pessoas têm quando se juntam as letrinhas E, X e U, disse que não sabe por que implicam com o rapaz que responde a esse nome (EXU). Dona Cici nos contou sobre o orixá Exu, disse que ele é uma energia, é o orixá mais parecido com o ser humano. Contou que cada um diz que ele é uma coisa, mas que ela aprendeu que Exu é um mensageiro do ser humano e também é mensageiro de espíritos da natureza.
Dona Cici disse que cada força da natureza tem um orixá correspondente. Ori quer dizer cabeça, Xá quer dizer dono de alguma coisa. Existem aqueles que são responsáveis pela natureza, pelo andamento das estações, por tudo o que há no mundo… Relatou que Exu é um orixá muito importante, que ele ajuda a pessoa a se livrar de problemas, equilibra seu caminho material. Se existe um buraco no caminho, Exu ajuda a pessoa a não passar por ele. Cici disse que existem muitos tipos de Exu e nos contou as histórias de alguns deles. Disse que Odara, por exemplo, é toda energia boa, tudo aquilo que faz bem; quando a gente abre a porta de manhã, respira e se sente bem é a energia de Odara que nos toca.
Dona Cici narrou que cada Exu tem seu jeito de trabalhar e que sem ele não se resolve nada, pois é ele quem ele carrega as coisas boas e ruins da gente. Ela disse: “Vocês já viram isso? A pessoa faz as coisas erradas e diz que o culpado é Exu. É nada. É ela que não presta, não sabe tratar os outros”.
Depois relatou como aborda a figura do Exu na escola: disse que apresenta às crianças o Exu Eleguá, que é também pequenino. Explicou que na cultura iorubá os orixás têm três faixas etárias: criança, adulto e velhinho. Eleguá é pequenino, uma criança, é o nome que Exu recebe em Cuba. Cici contou que, nesse país, mesmo quando a situação é difícil, se há uma festa para Eleguá logo aparece gente com fruta, com doce, com brinquedos. É uma alegria imensa a festa de Eleguá.
O orixá é apresentado de vermelho e preto ou de branco ou com outras roupas. Ele é um menino: coloca a roupa que quer, vira cambalhota, pula, roda com as crianças. É apresentado como um menino em tempo de aprendizado. Assim, as crianças se identificam com suas artes, com suas histórias.
Dona Cici nos contou a história que explica a personalidade de Exu. A partir do momento em que ele não tem mais suas necessidades satisfeitas pela mãe, passa a fazer as vontades das pessoas porque quer comida. Se a pessoa pede coisas boas, ele faz coisas boas, se pede coisas ruins, faz coisas ruins. Exu representa o nosso equilíbrio, pois ele mostra os dois lados, o lado negro e o lado branco da vida.
Ela disse que após contar a história de Exu às crianças, sempre lhes pergunta o que acharam da narrativa e, muitas vezes, elas respondem: “Ah, minha vó, a mãe não soube colocar limite no filho”. Com leveza, graça e profunda fé nas crianças, Dona Cici nos mostra que elas têm os olhos e os ouvidos bem abertos para novas experiências e podem surpreender os adultos, algumas vezes cheios de receios de abordar esse repertório afro-brasileiro.
Após a narrativa, ela cantou, tocou e dançou uma história de Exu. Dançou com tanta graça, que todos ficaram encantados com seus gestos, seu ritmo, sua leveza. Então, nos convidou para dançar com ela. Quase todos se levantaram, cantaram e dançaram em homenagem a Exu.
Assim seguiu-se a tarde, entre cantos, danças e histórias de orixás. Dona Cici conta histórias com simplicidade e verdade, permitindo aos ouvintes experimentar uma relação de escuta ancestral; ela reinventa o tempo e o espaço, tirando o outro de seu lugar habitual e levando-o consigo por meio da palavra viva que porta.
Muitas histórias depois, ela terminou sua fala e agradeceu. Dançamos novamente todos juntos. Dona Cici disse que ali estavam todas as energias unidas, todos, vivos e mortos, juntos.
Então, conhecemos a escritora Carolina Cunha, que reconta em seus livros as histórias dos orixás. Ela nasceu em Salvador, a cidade mais africana do Brasil. Sua infância e mocidade foram marcadas por inesquecíveis viagens ao Recôncavo baiano, especialmente à cidade de Cachoeira e à Ponta da Areia, na Ilha de Itaparica (que abriga o mais antigo culto aos eguns iorubás). É autora e ilustradora de uma série de livros sobre a cultura iorubá, tendo recebido inúmeros prêmios por sua obra.
Carolina diz se sentir constrangida por falar na presença de Dona Cici; ela relata que quando está com sua Iaiá gosta de fazer silêncio e de ouvir. Carolina mora na cidade de São Paulo desde os 20 anos, mas fica indo e vindo a Salvador, sempre com vínculo com seu lugar de nascimento. Diz que seu trabalho é de reconto, ela não inventa as coisas que escreve.
A autora conta de onde surgiu seu desejo de escrever e ilustrar histórias da cultura iorubá: quando criança procurou na escola as histórias que ouvia das pessoas que tomavam conta dela, dos lugares onde ela vivia e não as encontrou. Ficou entristecida, pois aquelas eram suas histórias preferidas.
Quando escreve pensa em fazer com que essas narrativas cheguem a todas as crianças, incluindo aquelas que não são afrodescendentes. Entretanto, Carolina afirma que sua intenção principal é que elas cheguem às crianças afrodescendentes para que estas se reconheçam nas histórias.
Carolina relata que não tinha grandes pretensões ao escrever o primeiro livro, mas ele foi distribuído para as bibliotecas escolares de todo o Brasil e isso lhe deu forças para escrever o segundo, o terceiro e todos os outros que vieram. A escritora disse ainda que há muitas histórias para contar e que ela irá continuar escrevendo e ilustrando as narrativas iorubás.
Ela diz que procura seguir as orientações de Dona Cici de preservar as cantigas e, se possível, mencionar os ritmos, pois toda narrativa está ligada a uma ou mais cantigas. Declara que algumas vezes ela ouviu que as palavras originais eram muito difíceis, mas que se esforçou para manter o vocabulário. Disse ainda que o grande interesse das crianças não ligadas ao candomblé é ouvir aquelas palavras diferentes com a maior clareza possível. Sempre que visita as escolas, elas lhe pedem para pronunciar as palavras desconhecidas. Carolina contou que as crianças se encantam, dançam, cantam, batem palmas e que, muitas vezes, bate o sinal e elas não querem descer para o recreio.
Ela disse que pôde ver com os próprios olhos que as crianças estão preparadas, pois elas têm o coração aberto para essas e outras culturas, elas têm interesse por qualquer coisa que a gente apresente com boa intenção. Há alguns anos Carolina Cunha começou a ir às escolas para falar sobre os livros que escreveu e ilustrou e sobre as histórias iorubás.
Muitos de seus livros foram indicados a prêmios, são histórias reconhecidas, o que vai na contramão de todo o preconceito e intolerância que ainda hoje existe. Carolina disse que se o professor, se a escola dá oportunidade, as crianças aceitam, vivem essas narrativas, estão abertas para recebê-las.
A escritora contou sobre sua surpresa em relação ao livro de histórias de Exu. Ao contrário do que esperava, afinal é um livro bonito e ao qual ela se dedicou, ele não ganhou prêmios, não viajou para outros países, não foi adotado nas escolas, como os livros anteriores. Carolina disse que ficou surpresa e triste com essa não aceitação da obra, pois Exu tem muitos encantos e histórias lindas. Ela relatou que foi se informar sobre os motivos dessa recusa e lhe disseram que os professores, só de verem o nome do livro, não querem adotá-lo e ele acabou preterido.
Um pouco depois, publicou a história de Eleguá, que é um tipo de Exu. Esse livro foi finalista no prêmio Jabuti, adotado pelo PNLD, foi para Bolonha… Ela foi convidada para falar sobre o livro e foi quando os professores e demais pessoas descobriram que Eleguá é um Exu.
Carolina contou, satisfeita, essa história de recusa e aceitação do mesmo orixá apenas com a mudança do nome. É uma situação que pode orientar o trabalho na escola, como proceder para evitar chocar-se com preconceitos. Primeiramente, não devemos aceitá-los e, se possível, devemos desviar-se deles, continuando a divulgar a cultura afro-brasileira.
No final, Dona Cici contou a história da origem do acarajé; é uma narrativa que fala sobre as esposas de Xangô. Antes, ele tinha duas esposas: Obá e Oxum. Oxum fazia comida e mandava Iansã levá-la a Xangô dentro uma panela coberta. Um dia, ela disse para Iansã levar a panela, mas não abri-la. Iansã sempre levava a panela coberta, mas Oxum nunca havia dito nada sobre isso. Foi ela dizer e a curiosidade tomar conta de Iansã. Então, Iansã levou a comida, mas no meio do caminho, ela abriu a tampa e viu um fogaréu. Ficou assustada ao ver que o rei comia fogo. Impressionada, ela levou o alimento ao rei, mas ele, como todo orixá, entendeu que Iansã havia visto o alimento e lhe perguntou para confirmar: “Você viu o que o rei come? O que o rei come?”. Iansã respondeu: “Fogo”. Ele, então, lhe fez mais duas vezes a mesma pergunta e, por duas vezes, ela respondeu: “Fogo”. Nesse momento, Xangô abriu a panela e veio aquele fogaréu. O orixá mergulhou a mão no fogo e começou a comê-lo. Em seguida, disse para Iansã comer o fogo também. E ela comeu! Quando os dois terminaram, Xangô lhe perguntou novamente: “Você viu o que o rei come?” Iansã lhe respondeu: “Fogo”. E Xangô: “O que você sentiu ao comer fogo?”. Iansã: “Fortaleza!” Ele disse, então, que ela havia descoberto o segredo do rei. A partir desse dia, Xangô passou a ter três esposas, cada uma responsável por um elemento da natureza.
Dona Cici contou que em memória dessa história se criou o “acarajé”. Akará significa “bola de fogo” e jé significa “comer”, portanto acarajé significa “comer bola de fogo”. Ela, então, nos convidou a comer o acarajé, que havia entrado na sala, misteriosamente, em uma panela coberta no início da fala de Carolina Cunha.
Enquanto comíamos, ainda houve tempo para perguntas. A cada pergunta, Dona Cici respondia com uma narrativa dos orixás.
O encontro de sabenças afro-brasileiras acabou às 17 horas, com muitos aplausos e muita alegria. Todas as pessoas presentes puderam saborear as histórias de Dona Cici, detentora da palavra viva, sagrada. A humildade, generosidade e presença de Dona Cici inundaram os corações de todos de fé na humanidade. O que ficou para nós foi o desejo de que essas narrativas possam chegar a mais e mais pessoas, como um rio que vai conquistando cada vez mais espaço e se tornando cada dia mais caudaloso. Não são apenas as crianças que se abrem a essa riquíssima cultura; com delicadeza e verdade, ela certamente tem o poder de entrar no coração do homem adulto mais cético, mais duro, mais fechado.
No dia 14/05/2014, em meio a muitos contadores de histórias e pessoas apaixonadas por narrativas, não houve ninguém que não tenha se emocionado com a palavra de Dona Cici. Epa babá!
relato de Camila Tardelli
fotos de Pedro Napolitano Prata