Programação Boca do Céu

Debaixo do barro do chão

O tema geral do Boca do Céu 2022 focaliza certas sabenças
d´além mar – influências portuguesas na constituição da alma
brasileira, situando o contexto geral da nossa intenção e nossas ações.

continuar lendo

Debaixo do barro do chão

O tema geral do Boca do Céu 2022 focaliza certas sabenças d´além mar -influências portuguesas na constituição da alma brasileira-, situando o contexto geral da nossa intenção e nossas ações.

Isso tratando- se da superfície da tela. Mas, como nas pinturas renascentistas, por baixo do que se vê como rostos, veludos, paisagens e madonas, está  oculto o esquema compositivo da obra, traçado rigorosamente de acordo com o princípio da perspectiva linear.

Assim imaginamos o  desenho conceptivo da nossa aventura de buscar um lugar fecundo para um mundo lusófono visto como árvore frutífera dentro da
vastíssima  paisagem de nossa alma brasileira.

As palavras “fecundo” e ” frutífera”  testemunham o reconhecimento de um lugar “dentro da terra” 

– de onde brota a árvore

– em que nasce a fruta

cujo nome apenas o jabuti conseguiu cantar e guardar na memória.

Será que existe uma fruta que define o gosto da alma brasileira? Será
que ela teria apenas um nome como no conto popular? Onde se encontraria, por dentro da pluralidade de personas que habitamos e nos habitam, um tipo de singularidade, caroço de tucumã, do ser humano brasileiro?

Talvez o que importe mesmo seja buscar nomear uma experiência de Brasil que junte memórias das fontes com sonhos de porvir. Fontes que, para começo de conversa, são superficialmente três. Que por sua vez se originam de outras tantas fontes matriciais, ramificadas em variadíssimas direções… gente, isso vai dar lá no começo do mundo, na terra do sempre: debaixo do barro do chão!

Dos três grupos humanos que, digamos, continuando a conversa,  juntam-se inicialmente moldando nosso ethos brasileiro-  as culturas ibéricas, as culturas africanas e as culturas indígenas autóctones, igualmente milenares  – vamos nesta edição do Boca do Céu cavoucar nossas heranças portuguesas, como já foi dito inicialmente.

Queremos interrogar traços lusitanos que nos constituem em lugares inesperados, para além das contingências recortadas por algumas descarnadas sistematizações. Por não estarem em compasso com a vida vivida,  tais abordagens podem nos oferecer  interpretações que por vezes se assemelham às irmãs da Cinderela tentando fazer caber seus pés enormes no sapatinho de cristal perdido….

Onde então buscamos esses traços?

Convidamos para nosso Encontro estudiosos que nos abrem horizontes e nos oferecem parâmetros e contextos esclarecedores para aprendermos a pensar melhor. 

São Sebastião, a Imperatriz Porcina, a Era do Espírito Santo, Leandro Gomes de Barros, o sebastianismo, contos galegos…são nomes e palavras que povoam as reflexões de nossos convidados em seus mais variados pontos de vista.

Buscamos também esses traços em manifestações da palavra narrada,
cantada, recitada, brincada , pelejada, dançada, dramatizada e louvada por pessoas que habitam a terra vermelha, preta ou amarela que nos molda em límpidas misturas. 

Dentro do sonoro balaio da nossa programação, procurem a presença de Agostinho da Silva, das Caixeiras do Divino Espírito Santo da Casa Fanti Ashanti do Maranhão, das cantigas e brincadeiras brasileiras e portuguesas, dos Lunários Perpétuos  e dos Profetas da Chuva, dos cordéis, contos e romances, da tradição oral açoriana de Santa Catarina.

E, é claro, venham escutar as vozes narradas e cantadas em seus inúmeros matizes da língua portuguesa.

Estes são alguns vislumbres do que vocês poderão encontrar ao percorrer a programação deste ano, caminhando pelos espaços da Oficina Oswald de Andrade. 

“No meio da noite escura tem um pé de maravilha”*

Quem sabe essas palavras verdadeiramente encantadas que atravessam eras em palácios subterrâneos, como convém ser, possam surgir hoje na superfície da História e nos contar outras estórias que revelam um Brasil que a gente sonha aprender.

Na navegação do agora queremos recolher pistas de canoas ancestrais ameríndias de tempos virgens de brancos. Queremos encontrar sulcos de remos a acompanhar orações secretas dentro de grilhões, durante as infames travessias marítimas.

Da bússola, apenas a agulha a tremeluzir em direção ao alto do céu : na
retidão vertical da busca de um outro ser humano a ser concebido e
frutificado na fecundidade simbólica da  “criança sábia” e peralta, presente na memória de tantas culturas do mundo.

Recordando a “criança eterna”, fundamento perene do nosso destino, a viver encoberta dentro de cada ser humano, per omnia secula seculorum, queremos  augurar uma nova beleza possível de se manifestar nas crianças,  que ao nascer , como diz  Lydia Hortélio, “trazem as últimas novidades do céu”.

Com a coroação do menino imperador e da menina imperatriz do mundo,  na nossa “transcriação”de uma Festa do Divino, quem sabe possamos contribuir com a imaginação de um mundo melhor.

Venham!

*Título de um livro de Ricardo Azevedo