O jabuti e as frutas desconhecidas – Versão de Beatrice Tanaka (1932-2016)
voltar aos contosO jabuti mora na floresta. Ele nada bem, mas na terra firme anda tão devagar, devagarzinho, que é sempre o último a saber das notícias.
Assim, ele só ouviu falar das frutas desconhecidas depois de todos os outros bichos terem tentado em vão colhê-las.
-As frutas o quê? – perguntou o jabuti ao macaco.
-Desconhecidas, que crescem numa árvore estranha, lá no coração da selva!
-Elas brilham como estrelas coloridas – disse a capivara.
-E parecem tão gostosas que a gente fica babando só de olhá-las! – falou a paca.
– Mas a árvore que as carrega é muito esquisita. Imagine: só quem sabe o seu nome pode colher suas frutas…
– Então, quando você se aproxima dela sem cumprimentá-la pelo nome, zás! Ela levanta os galhos para o céu, e nem os pássaros conseguem alcançá-los!
– O pior é que há alguém que conhece esse nome: é uma velhinha que mora numa palhoça por perto. Todos nós já fomos vê-la, e ela nos disse o nome da fruta, mas ele é tão comprido e complicado que o esquecemos antes de chegar ao pé da árvore…
O jabuti cai na gargalhada:
– Que bom! Assim, serei o felizardo que comerá aquelas frutas… Aposto que elas estão me esperando!
Os outros bichos riem também, pois todos sabem quanto o jabuti gosta de se gabar. Mais forte que a sua mania de se vangloriar , só a sua paixão pela flauta: ele nunca sai de casa sem ela. E é tocando uma marchinha alegre em sua flauta que o jabuti toma o caminho da palhoça no coração da selva.
A velha já está acostumada a receber a visita; assim ela diz:
– É um nome fácil, meu amigo: ela se chama boioió quizama quizu!
O jabuti, bem educado, agradece e começa a tocar sua flautinha: boioió boioió quizama quizu, boioió boioió quizama quizu…
Ele sabe que nunca se deve dar uma resposta falsa a uma primeira pergunta.
Mas a velha o interrompe:
-Pare aí, caro jabuti! Desculpe, eu falei errado! O nome verdadeiro da fruta é quizizu boiani quizungo boiú!
“Ah! É assim que esta malandra consegue confundir a bicharada, pra ninguém lembrar o nome da fruta!Só que eu, comadre, sou um malandro e meio!” – pensa o jabuti.
E, fazendo de conta que não ouviu nada, ele continua caminhando e tocando a flauta: boioió boioió quizama quizu, boioió boioió quizama quizu, boioió boioió quiza…
A velha corre atrás dele e grita:
– Ei! Pare! Acabei de lembrar! O nome certinho é zuzuqui banaiú zungoqui boiá!
Mas o jabuti nem dá bola e continua tocando: boioió boioió quizama quizu, boioió boioió quizama quizu…
E vai indo, sem pressa, mas sem parar, ciente de que está à frente da velha, que anda mais devagar que uma lesma…ainda mais agora que se cansa gritando:
– Espere aí! Minha memória voltou! O nome da fruta é mesmo ioioqui zunzun yoyoqui bumbum!
Só que quanto mais a velha grita nomes diferentes, mais o jabuti insiste em repetir “boioió quizama quizu”… E é “ boioió boioió quizama quizu” que a flautinha está cantando quando o jabuti chega ao pé da árvore, cujos galhos respondem abaixando-se como numa saudação.
Acontece que a onça pensara que valeria a pena ficar perto da árvore no coração da selva, caso o jabuti chegasse a conhecer o nome. Ela se escondera por perto, de olho nas frutas, e agora, vendo os galhos responderem à flautinha que cantava o nome certo, sai do seu esconderijo, parabeniza o jabuti, se fas de inocente e pergunta:
– Diga, compadre, como é que você vai colher as frutas, já que não sabe subir em árvore?
O jabuti acena com a cabeça:
– Eis uma pergunta muito sensata, comadre onça!
– É, compadre. E olhe que tenho também a resposta: enquanto você continuar a chamar a árvore pelo nome, eu subo nela e colho as frutas que dividiremos depois, como dividimos o trabalho agora…
-Você é mesmo muito, muito sensata!- diz o jabuti.
E, enquanto ele repete sem parar “boioió boioió quizama quizu”, a onça colhe as frutas, as põe no cesto que trouxera…
E some correndo.
O jabuti a segue com dificuldade, mas a alcança na beira de um igarapé transbordando com as águas das últimas chuvas. A onça o atravessara sem problema à caminho da árvore, mas agora, com sua carga preciosa, ela hesita: a natação nunca foi seu ponto forte.
O jabuti lhe sorri cordialmente e diz:
Obrigado por estar me esperando aqui! Agorinha mesmo eu estava pensando: já que você carregou estas frutas na terra firme, eu deveria me encarregar de seu transporte na água…tanto mais que, ao chegarmos do outro lado do igarapé, pedirei pra você levar a minha parte até a minha toca…
“Hahaha! Ele se gaba da sua inteligência, mas é tão burro quanto vaidoso!” – pensa a onça ao confiar o cesto ao jabuti.
O jabuti se apressa a atravessar o igarapé, pois desconfia da onça em terra firme. Ele se esconde atrás de uma raíz, num buraco à beira d’água e fica esperando. Espera muito, porque a onça, cansada da corrida, acha a travessia difícil. De fato, o jabuti até cochila um pouco e somente acorda ao ouvir a onça resfolegar, se sacudir e gritar:
-Oi, jabuti! Cadê você?
-Aqui…assobia o jabuti.
-Aqui… onde?Não te vejo!
-Aqui…repete o jabuti.
E, com um capim comprido, ele cutuca o rabo da onça, que se agita por sentir cócegas.
A onça olha o seu rabo, que saltita sem que ela o tenha mandado e grita:
-Pare com isso,rabo! e você, jabuti, venha já pra cá!
O jabuti ri e continua a cutucar o rabo da onça com o capim. E a onça se zanga com o próprio rabo:
-Impertinente! Desobediente! Ousa o caçoar da tua patroa?
O jaboti ri às gargalhadas.
E quanto mais ri, mais ele faz cócegas no rabo.
E quanto mais ele saltita, mais a onça se zanga:
-Ai de você quando eu te pegar!
E a onça tenta segurar o rabo.
Ela se torce e se retorce sem conseguir agarrá-lo.
ela grita, rodopia com um pião numa roda de crianças, como uma folha na ventania…
Ela persegue o rabo até estafar-se e acaba caindo, tonta e quase morta de cansaço.
Então o jabuti sai calmamente do seu esconderijo, acerta a fita de fibra do cesto em sua testa, sorri para a onça desmaiada e vai se embora, sem pressa, para saborear as frutas desconhecidas em sua toca.
E, até hoje, só o jabuti conhece o gosto das frutas da árvore boioió boioió quizama quizu,
TANAKA, Beatrice. No país do Jabuti: contos e mitos indígenas do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional; 2006.