Contos de assombração: uma bibliografia em construção
voltar às notíciasIlustração: Leo Yu Marins
por Regina Alfaia
Por onde começar? Bem, até 1979, minha casa tinha apenas uma lâmpada elétrica que ficava na sala de chão encerado vermelho. Nunca era acesa. Em todos os cômodos da casa, cheia de frestas nas paredes de tábuas, havia uma cantoneira que abrigava uma lamparina à querosene, artesanalmente confeccionada com as latas usadas de óleo de cozinha. Quando minha mãe ou meu tio Zé, contavam histórias à noite, a luzinha da lamparina e das frestas delineavam sombras que davam um ar de mistério a todas as suas palavras. Se até a Bela adormecida era obscura, a Ceiuci era o próprio Bicho-papão.
Ao refletir sobre isso, quando comecei a contar histórias de “medo”, também quis entender o que seria uma história que dá medo, uma história de terror ou de assombração, já que, à sua menção, me vinham imagens de Moura Torta e Mãe-D’água, da mesma forma que de Curupira, Jurupari e Boiúna, de visagem, alma penada, de Diabo e de Morte, na mesma lembrança, dependendo da memória que tinha das sombras projetadas pelas paredes, teto e chão lá da minha casa da infância. Como distingui-las?
Foi através da preparação para o trabalho na sala de aula que obtive algumas respostas que, reconheço, favoreceram minhas escolhas, sem necessariamente esgotar o assunto. Por isso essa bibliografia é mesmo pessoal. Embora apresente alguns títulos que indubitavelmente são de medo, ela é uma possibilidade de selecionar e listar, que tem origem em uma relação construída aos poucos com os contos que as obras contêm e com o jeito que escolhi guardá-las e repassá-las. A lista não se pretende abrangente ou completa, pois faz parte de um percurso pessoal-profissional, mais do que de uma pesquisa rigorosa do ponto de vista teórico-metodológico. Eventualmente haverá quem discorde e peço que releve as imprecisões e procure excluir ou incluir títulos, conforme seu próprio parecer.
Além dos contos de medo recolhidos pelos folcloristas, incluí antologias de escritores, principalmente aqueles e aquelas que recuperaram de suas memórias os contos que ouviram na infância, e uns poucos títulos mais autorais. Há autores que abordam o medo pelo viés da autoajuda ou do controle pessoal desse sentimento e, mesmo que reconheça o valor de alguns, evitei essa linha, por não ser aquela que adoto em meu trabalho, ao ler ou narrar contos orais em sala de aula.
Respondendo meus questionamentos iniciais cabe informar que os contos “de medo” são associados, na Literatura escrita, às narrativas de enigma ou de mistério. O leitor pode lembrar aqui tanto de Edgar Alan Poe, quanto de Agatha Christie. O terror, o conto policial, o suspense. Os personagens sinistros, sombrios. Os cenários afastados das cidades do interior, desertos e cercados de mistério, aos quais são atribuídas visagens, aparições, sumiços, o desconhecido e os fatos extraordinários e sobrenaturais. Principalmente quando a noite chega com seus vultos, ruídos e sopros de ventos repentinos, bem como os arrepios e o pulsar acelerado dos corações dos destemidos protagonistas. A seleção que fiz é composta predominantemente, dos contos ditos populares, recolhidos da tradição oral do Brasil e de outros cantos do mundo.
Para isso escolhi o termo “assombração” como atributo de distinção. Já que o público de destino (inicialmente) seria de crianças, com idade entre 8 e 12 anos, recorri a um critério pouco usual, e que surgiu de uma percepção particular, de um grupo de crianças que, identificando que os contos de assombração não as assustavam, mas os de terror sim, justificaram que, nos de assombração “quem fica com medo são os personagens da história”, enquanto que os de terror assustam também os leitores.
Bibliografia de Contos de Assombração
Para começar, cito os contos solitários que encontrei em antologias ou obras não específicas de compilação de histórias de medo, porque acho importante reforçar que as obras de referência sempre podem nos surpreender por sua abrangência e também porque tendo uma pergunta ou um critério, ao revisitá-las podemos frequentemente encontrar subsídios ou olhar para as mesmas narrativas sob novos pontos de vista. Com o fito de escolher contos que desejava contar em sala de aula para evidenciar suas características, minha releitura revelou qualidades novas, atravessando as camadas que as leituras anteriores não distinguiram.
Quando iniciei essa seleção, em 2013, foquei nos contos primeiro, mais tarde é que ampliei a seleção para incluir obras que, inclusive, pudessem ser lidas pelas crianças. Comecei exatamente visitando os personagens das histórias ouvidas na infância, em casa sob a luz daquela lamparina. Nos contos que encontrei, alguns dos personagens, o Saci, por exemplo, protagoniza tanto facécias e causos, quanto contos de assombro. Da mesma maneira um conto em que os personagens são assombrados por visagens pode ser compilado com classificação diversa da que apresento aqui e, ainda assim, cumprir sua função de acordo com o contexto escolhido e as qualidades relevadas pelo narrador, como é o caso do conto Os três irmãos e a prima rica, que na antologia de Lindolfo Gomes(1875-1953), Contos Populares Brasileiros, aparece na seção dos contos maravilhosos.
CASCUDO, Luis da Camara. Antologia do folclore brasileiro-vol. II. São Paulo: Global, 2002.
Publicado inicialmente no final da década de 1940, esse volume apresenta “Os estudiosos brasileiros dos Séculos XIX e XX”, subtítulo no qual são listados e referenciados folcloristas e suas recolhas, seguidos de exemplos. Destaco os verbetes Saci, Curupira e Jurupari, três breves descrições que integravam, originalmente, uma pequena publicação, Vocabulários, de Ermano Stradelli (1852-1926). De outro folclorista, José Carvalho (1872-1933), deparei ainda com a narrativa Bate-Bate, a canoa fantasma.
CASCUDO, Luis da Camara. Literatura Oral no Brasil. Rio de Janeiro: Itatiaia, 1984.
A visita da comadre Morte, recolhida em 1852, é uma narrativa de morte malograda que Cascudo cita nesta obra de referência para o estudo da tradição oral no Brasil.
MAGALHÃES,José Vieira Couto de. O Selvagem. Rio de Janeiro: Itatiaia 1975.
A lenda da Velha Gulosa, Ceiuci, coletada em 1865, por Couto de Magalhães integra O selvagem. Minha edição dessa obra antropológica é comemorativa do seu primeiro centenário de publicação. Lançada em 1975 pela editora Itatiaia, de Belo Horizonte em parceria com a ed. Universidade de São Paulo.
TRIGUEIRO, Osvaldo Meira. PIMENTEL, Altimar de Alencar. Contos Populares Brasileiros: PARAÍBA. Recife: Massangana, 1996.=
A mulher que venceu o cão, está nesta coletânea que faz parte do projeto Conto Popular e Tradição Oral no Mundo da Língua Portuguesa, que envolve instituições culturais do Brasil e de Portugal e agrega volumes de contos da Bahia, Ceará e Pernambuco.
BEATA DE YEMONJÁ, Mãe. Caroço de Dendê: A sabedoria dos terreiros. Como ialorixás e babalorixás passam conhecimento a seus filhos. Rio de Janeiro. Pallas, 2008.
As narrações de Mãe Beata evocam o universo religioso do Candomblé e também o dia-a-dia de sua infância povoada pelas vozes de antigos escravos e seus descendentes, homens e mulheres que guardavam forte influência da tradição oral de suas culturas de origem. Dentre as narrativas, Samba na casa de Exu, lembra alguns contos de Maria Valsa e o Diabo. Assim como nos contos: As patacas malditas, O cachimbo da tia Cilu e A saia de taco, destacam-se as aparições e os finais repentinos, aspectos característicos de contos de assombro.
PIRES, Cornélio. Quem conta um conto… (E outros contos). Tietê: Ottoni, 2002.
De Cornélio Pires (1884 –1958), os primeiros contos dessa antologia, Prá mim foi pizadêra… e As cruzes do Mato-Dentro, são deliciosos e a pesquisa dos dialetos do interior paulista, tão diligentemente coligidos pelo folclorista, jornalista, músico e compositor Cornélio Pires, se destaca e testemunha a presença dos contos de assombração no cotidiano das pessoas. Dessa maneira, mesmo o conto de assombração não seja a tônica dessa publicação, a diversidade expressa nos demais textos, presentes na obra, formam um desenho primoroso do contexto de produção desse gênero, inclusive dando pistas sobre a performance de um narrador oral no interior da sua cultura.
Co-edição Latino-Americana. Contos de lugares encantados. São Paulo: Ática, 1989.
Título que faz parte de uma série em que escritores de vários países da América Latina recontam narrativas da tradição oral das suas culturas de origem. Embora assombração nãos seja o foco, contos como A pele do Lago, A quebrada do Diabo e Os cavaleiros de Isabela, contemplam suas características e são exemplos de como podemos nos surpreender ao visitar um conto com critérios novos.
GUIMARÃES, Ruth. Lendas e fábulas do Brasil. Taubaté: Letra selvagem, 2019.
A narrativa Quem te matou? recontada de modo preciso por Ruth Guimarães na coletânea Lendas e fábulas do Brasil, reeditado em 2019, pela editora Letra Selvagem, de Taubaté, é um daqueles contos que atestam o caráter universal dos contos de assombração. Sua beleza e precisão instigam a mente e pode constituir um excelente desafio ao leitor em formação.
Coletâneas dos memorialistas:
Alguns autores revisitam suas infâncias, recuperam suas memórias sobre os contos que ouviam, as pessoas que lhes contavam ou os lugares onde as narrativas se propagaram. Desse processo resultam coletâneas que agregam peculiaridades sobre o modo de narrar, a escolha vocabular e, como não poderia deixar de ser, oferecem um repertório rico de versões de uma mesma narrativa e das características do lugar ou da assombração. Ao lê-las, acessamos um conjunto de maneiras de identificar um lobisomem ou de como eliminá-lo, as diferentes formas de Matinta ou as mais variadas estratégias de caçar um Saci, por exemplo.
FREYRE, Gilberto. Assombrações do Recife Velho: algumas notas históricas e outras tantas folclóricas em torno do sobrenatural no passado recifense. São Paulo: Global, 2001.
Com a primeira edição datada de 1955. Esta é uma obra especializadíssima que conta com o rigor desse importante polímata brasileiro que enriquece cada narrativa com menções aos locais e o contexto histórico que faz surgir muitas das aparições citadas e sua relação com a cidade do Recife. A erudição do autor prevalece sobre os narradores e as narrativas perdem um pouco de sua característica de oralidade, fato compensado pela relação de proximidade que o narrador constrói com o leitor, fortalecido pelo discurso em primeira pessoa empregado nas narrações, além das referências que faz às narradoras de quem recebeu as narrativas.
PESSÔA, Augusto. Bá e as visagens, histórias de assombração. Rio de Janeiro: Escrita Fina, 2011.
Uma delícia o modo como Augusto impõe uma vivacidade às lembranças de sua escuta dessas histórias, transbordando a voz de sua Bá, ao longo de todas as narrativas. Sua narração em primeira pessoa e a referência a Bá atestam a origem oral das narrativas de sua coletânea.
SILVEIRA, Maria José. Uma cidade de carne e osso: Casos do interior. São Paulo: FTD, 2004.
Essa coletânea tem uma narradora muito singular que comenta e torna a cidade viva, destacando as cidades interioranas e seu cotidiano como o cenário ideal para os contos de assombração. Sua narração da história da Tereza Bicuda é imperdível. A autora manteve em sua escrita o sabor de algumas palavras que evidenciam a origem oral dos contos que constitui uma importante fonte para quem se interessa por introduzir estes recursos em sua performance, enquanto os sustos, espantos e assombros desfilam pelas ruas e praças de uma adorável cidadezinha.
PRANDI, Reginaldo. Minha querida assombração. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2003.
As seis histórias narradas nessa pequena novela em que um viúvo e seus quatro filhos estão de férias em uma antiga fazenda, na qual uma contadora de histórias entretém seus hóspedes todas as noites, são encantadoras. Além de caracterizar muito bem o cenário e cada personagem em suas narrações, Prandi, espalha crendices, superstições, ditos e provérbios, lembrando dos muitos elementos que dialogam com as histórias de tradição oral, proporcionando ao leitor fluente ampliar seu repertório e, bem guiado, dar sentido a essa diversidade cultural durante a leitura.
Assombrações de muitos lugares
As obras dessa sessão são resultado tanto de recolhas quanto de compilações de contos relacionados a lugares específicos. Há uma variedade de vozes, fórmulas, ditos e falares que dão colorido e animam tanto o leitor iniciante, como o mais exigente, e até os profissionais. O leitor atento pode observar que obras que compõem outra seção, como a de Gilberto Freyre, poderiam pertencer a esta. Mas por se tratar de uma bibliografia pessoal, nesse momento, essa me pareceu a escolha mais adequada. No futuro, talvez modifique inclusive as repartições.
TURCI, Érica. BARUEL, Tatiana. O que se conta daqui… Jacareí: Edição do Autor, 2006.
PEREIRA, Maurício. Contos de assombração: causos arrepiantes de Redenção da Serra. São Paulo: DCL, 2010.
MONTEIRO, Walcyr. Visagens, assombrações e encantamentos da Amazônia. Belém: Edição do Autor, 2005.
PRIETO, Benita. ABAD, Ernesto. Medo: histórias das terras daqui e de lá. Rio de Janeiro: Zeus, 2007.
PIMENTEL, Altimar de Alencar. Estórias de são João do Sabugi. Brasília: Thesaurus, 1982.
GOMES, Lenice. Vozes do Sertão. São Paulo: Cortez, 2014.
SANTOS, Theobaldo. Lendas e mitos do Brasil. São Paulo: Editora Nacional, 1987.
SALERNO, Silvana.Histórias da América Latina. São Paulo: Planeta, 2013.
BODENMULLER, Celina. PRANDO, Fabiana. Contos encantados da América Latina. São Paulo: Moderna, 2018.
PALLUY, Christine. Contos para sentir medo. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2011.
Coletâneas especializadas
O Diabo e a Morte estão sempre assombrando e provocando a imaginação humana. Talvez pelo mistério que inspiram ou quem sabe pelo desafio que configuram à racionalidade humana, são nomes frequentemente citados no levantamento bibliográfico de medo. Há inclusive um pouco de rejeição a tais títulos, mas vencida essa primeira impressão, sua leitura constituiu uma entrada para repertórios valiosos sobre a tradição oral do mundo, além do encontro com construtos fundamentais sobre a humanidade e sua relação com o desconhecido.
GUIMARÃES, Ruth. Os filhos do medo. Rio de Janeiro: Globo, 1950.
Resultado de um trabalho rigoroso de pesquisa que permanece como referência no Brasil e no mundo, sobre o diabo e outros causadores de medo. A obra reúne, além da reconstituição histórica do percurso de uma das mais antigas crenças da humanidade, contos, causos, ditos, sortilégios, feitiços e tantos outros verbetes valiosos sobre os demônios. Sua leitura é um privilégio e uma aventura imprescindível aos pesquisadores da tradição oral.
GOMES, Lindolfo. Contos Populares Brasileiros. São Paulo: Companhia Melhoramentos, 1931. Coletânea que apresenta uma sessão especial chamada: Ciclo do diabo.
Lindolfo Gomes (1875-1953), em sua coletânea Contos populares brasileiros de 1931, editado pela Companhia Melhoramentos-SP, apresenta uma sessão especial Ciclo do diabo.
PIMENTEL, Altimar de Alencar. Estórias do diabo: o diabo na criação popular. Brasília: Thesaurus, 1992.
PIMENTEL, Altimar de Alencar. Estórias da boca da noite. Brasília: Thesaurus, 1976.
HAURÉLIO, Marco. O noivo defunto e outros contos de mal assombro. São Paulo: Nova Alexandria, 2019.
MORAIS, Flávio. E Quem quiser que conte outra… 7 contos de arrepiar. São Paulo: Rocco, 2006.
Contos de Assombração. Coedição Latino-Americana. Saõ Paulo: Ática,1999.
Obras de escritores
Alguns escritores são também pesquisadores e destinam parte importante de sua obra a recontar ou inventar histórias a partir da tradição oral brasileira. Suas obras apresentam repertório fundamental, que cada leitor vai identificar, as fórmulas de começo de um, os dizeres de cada região, os provérbios, quadrinhas e canções, enfim toda uma diversidade cultural que permeia sua produção a partir de suas pesquisas, por isso não poderia deixá-los de fora nessa bibliografia.
SSÓ, Ernani. Contos de morte morrida: narrativas do folclore. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2007.
SSÓ, Ernani. Castelos de fantasma: narrativas do folclore. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2008.
AZEVEDO, Ricardo. A vida e a outra vida de roberto do Diabo. São Paulo: Scipione, 1988.
AZEVEDO, Ricardo. Contos de espanto e alumbramento. São Paulo: Scipione, 2005.
AZEVEDO, Ricardo. Contos de enganar a Morte. São Paulo: Ática, 2003.
GOMES, Lenice. Quanto mais eu rezo mais assombração aparece. São Paulo: Cortez, 2012.
LAGO, Ângela. Um conto meio pagão meio cristão recontado por Ângela Lago. Belo Horizonte: RHJ, 1992.
LAGO, Ângela. Sete histórias para sacudir o esqueleto. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2002.
LAGO, Ângela. Muito capeta. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2004.
LAGO, Ângela. O caixão rastejante e outras assombrações de família. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2015.
FITTIPALDI, Ciça. Tereza Bicuda. São Paulo: Scipione, 1988.
MESSIAS, Adriano. Histórias mal assombradas em volta do fogão de lenha. São Paulo: Biruta, 2004.
MESSIAS, Adriano. Histórias mal assombradas do tempo da escravidão. São Paulo: Biruta, 2005.
MESSIAS, Adriano. Histórias mal assombradas de um espírito da floresta. São Paulo: Biruta, 2006.
MESSIAS, Adriano. Histórias mal assombradas de Portugal e Espanha. São Paulo: Biruta, 2010.
NETO, Simões Lopes. A Salamanca do Jarau. Porto Alegre: Artes e Ofícios, 2001.
GÓES, Lúcia Pimentel. Assombrações da água. São Paulo: Larousse do Brasil, 2006
JUNQUEIRA.Sônia. A serpente misteriosa. São Paulo: Atual, 2013.