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BOCCA CHEIA DE HISTÓRIAS

voltar às notícias 18 de setembro de 2023
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Conheci o José Bocca em uma das edições do Simpósio Internacional de Contadores de Histórias no Rio de Janeiro. Estávamos na oficina da Inno Sorsy, onde nos divertimos criando adivinhas. Foi um encontro de almas instantâneo. Nos reconhecemos como seres da mesma tribo no primeiro “o que é, o que é” e não nos distanciamos nunca mais.

Frequentamos juntos vários festivais, inclusive o Boca do Céu. Lembro-me de um momento na oficina do grande Bruno de La Salle. Bocca deu um show de ritmo (sua característica marcante como contador de histórias), ao contar num exercício proposto pelo mestre que ficou impressionado com a sua performance. La Salle dispensou atenção ao Bocca pelo tempo restante da oficina e deu seguidos exemplos da “palavra musical” baseados no jeito de narrar do Zé. Inesquecíveis também nossos momentos “off festivais”. Sempre encontramos tempo para prosear com os colegas de ofício numa roda de samba ou no “sujinho” mais próximo. O canadense Dan Yashinsky, a quem Bocca alcunhou de “meu truta”,  foi um que não dispensou esses momentos de total descontração, porque ali surgiam mil causos e anedotas entre gargalhadas e brindes sem fim.

Depois o Zé começou a frequentar Belo Horizonte e teve participação fundamental na abertura da Aletria. A sede já estava alugada e montada, mas eu ainda não havia aberto as portas. O Zé foi até lá, percorreu com o olhar todo o ambiente e disse: “O que você está esperando? Abra as portas. As coisas vão acontecer e as pessoas vão chegar.” Era o empurrão que eu precisava. Em 2005, abri as portas da Aletria, com a bênção e a força do Bocca. Saravá! Publicamos um livro dele em 2019, o reconto “O bicho mais poderoso do mundo”, ilustrações de Bruna Lubambo, primeiro volume da Coleção Colorín Colorado, um sucesso de vendas muito em função da paixão e do esforço de divulgação de seu autor.

Além do grande contador de histórias que foi, estudioso e defensor implacável da cultura popular, produtor que criou o projeto “Violas, Causos e Crendices” em sua amada Votorantim natal (“meu umbigo está enterrado lá”, dizia com orgulho), Zé era um companheiro atento e leal, um filho amoroso e dedicado aos seus adorados pais, Seu Toninho e Dona Helena, e aos seus irmãos, filhos, netos, amigos e parceiros de trabalho, como os músicos Marcos Boi e Maurício Toco. Zé Bocca era um amigão. Uma das pessoas mais íntegras, amigas, solidárias e éticas que já conheci, como me lembrou Danielle Ramalho sob o impacto da notícia de sua saída à francesa. Um coração de menino. Ele permanece em cada amigo que conquistou, em cada história que contou, no livro que escreveu, nos podcasts que narrou, nos afetos que generosamente construiu e fidelizou. E agora a gente se dá conta de que não sabia que a história do Zé Bocca era mais bonita que a de Robinson Crusoé.

É isso, minha gente. José Bocca nos deixou prematuramente no último dia 7 de setembro de 2023, uma quinta-feira, dia de Mushkil Gusha. Aliás, é a cara do Bocca sair de fininho num 7 de setembro, indignado como esteve nos anos pandêmicos sob o (des)governo do agora inelegível. A verdade é que o Zé sempre prezou pelos finais surpreendentes para as histórias. Eu fiquei aqui sem saber o que fazer, o tempo todo me vêm lembranças à cabeça. Tantos encontros, festivais, viagens, gargalhadas, as temporadas na roça, a festa de lançamento do livro dele na Livraria da Rua em BH, o Palmeiras que lhe deu tantas alegrias, todas as derrotas do Galo (meu time do coração) que ele zoou, seu imenso carinho por seus amigões Glauter Barros (o Picolé), sua querida “chefona” Benita Prieto, seu “cumpadi” Almir Mota, a quem ele alcunhou de “Bode”, seu brother Giba Pedroza, sua sister Josy Correia e, claro, Regina Machado, que proporcionou ao Zé oportunidades de trabalho na produção e na programação do Boca do Céu.

Ah, Zé, tanta vida, tantas histórias. Vida breve, muito breve. Já as histórias… essas permanecem. Acho que falo por todos os contadores de histórias do país: certeza que o céu te recebeu em festa, Zé. Posso visualizar a grande Contadora de Histórias mineira Hulda Mattos (que você tanto amava e admirava), no portão do céu bem ao lado de São Pedro, toda pimpona pra te receber, dizendo:

“– Esse vai pra minha ala, meu santinho. Tem espetáculo hoje. Passa pra cá, Bocca.” E seguem juntos de mãos dadas. São Pedro dá uma piscadinha marota e pensa: “Hoje tem festa no céu.”

Para sempre no meu coração, VOCÊ, meu amado amigo José Bocca. Até um dia!

Por: Rosana de Mont’Alverne (autora, contadora de histórias e criadora da Editora Aletria)