Boca do Céu 2018 recebe “O Dragão de Fogo”
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QUE TODO MUNDO DO “TEATRO E/OU NARRAÇÃO DE HISTÓRIAS PARA CRIANÇAS” PUDESSE IR VER
O DRAGÃO DE FOGO
Ou
Gente, que lindeza!!!
Então esse foi meu desejo nesse sábado de sol, 19 de junho: que esse dragão pudesse queimar todos os estereótipos cometidos em “prol das crianças”. Isso seria sonhar muito alto. Mesmo assim, o que esse espetáculo de vocês faz nesse sentido é muito demais de bom, obrigada!
O dragão queima:
– A estética brega e desinformada, milhões de vezes repetida dos cenários e figurinos com “cara de criança” – diminutivos e restritivos – ou “ inovadores”, fashion, coloridíssimos, tudo íssimos e cheios e badulaques.
– Queima a barulheira e os cantos fáceis e sem graça, a rapidez dos acontecimentos e o tudo muito explicado.
Teatro pra criança pode e deve apostar nos silêncios, respirações, pausas. Adorei quando, assumindo a quarta parede, os personagens ficaram firmes procurando a resposta para a terceira tarefa enquanto as crianças gritavam animadíssimas (por um lado seguindo impulso “natural” de responder a desafios perceptivos, de outro, acostumadas que estão às fórmulas que muitos espetáculos e professores lhes impõem de “participação”/ adestramento…)
Tudo bem que elas queiram dar respostas – estão vivas! – e tudo bem que o espetáculo de vocês PROPONHA e não imponha um outro tipo de contato, de encontro com a arte. Viva!
É uma questão importante: teve até uma hora em que o Esio furou a quarta parede e comentou o que uma criança disse (“não é espinafre a resposta…”). Esse equilíbrio, esse trazer as crianças pra dentro da cena sem recorrer à “interação fácil e pobre”, (perguntas óbvias – por onde ele foi? As crianças respondem: por ali…) às vezes sedutora (musiquinhas pra cantar junto) e por aí afora… não é fácil. Por isso é bonito do jeito que vocês fazem. Chamo de eficiência poética.
Teatro pra criança pode e deve convidar a percepção, as perguntas, a vontade de pensar, o afeto, o bom gosto, o desconhecido que vive dentro de cada ser humano. E que quase sempre são desconsiderados ou nivelados por baixo nos espetáculos para crianças.
– o Dragão queima limites:
As crianças podem e devem conhecer outros ritmos, cenários, linguagens, soluções cênicas, figurinos inspirados por uma outra visão de mundo – como a das culturas tradicionais – e que no caso desse espetáculo produzem uma arquitetura cênica requintada, deslumbrante, mínima, cheia de sugestões (ai que liiiiinda montanha), ousada e tecnicamente irrepreensível: não é aquele tipo de “teatro infantil” – graças a Deus – aquele que pensa na criança no diminutivo.
Mesmo vivendo dentro da balburdia e do lixo de imagens que esse nosso mundo produz em grande quantidade e velocidade, as crianças gostam, sim, de contemplar. De se abrir para acolher e conversar com o desconhecido, como Alice. Algumas vezes olhei a plateia e vi rostos de olhos redondos abertos em silêncio, meninos e meninas deixados quietos com seus sonhos, perguntas, medos, vontades, convidados delicadamente a imaginar…
Uma hora escutei atrás de mim:
– Mãe, porque ele repete sempre essa mesma frase:
“- Isso não tem o menor sentido lógico!”
E o menino disse isso imitando o gesto, o corpo, o rosto e a voz do Rato, com gosto, com alegria. Mesmo sem entender muito bem a frase – isso não importa – ele recebeu e repetiu a expressividade, a graça, a intenção, o bem que o ator fez a ele, sem nenhum dos dois saber porque. Isso pra mim é mágica…
Juro que a primeira vez que a fumaça branca entrou pela esquerda do palco EU VI um dragão entrando sendo essa fumaça, antes mesmo da figura vermelha entrar movimentando a bandeira.
O dragão queima o uso insuportavelmente repetido da esteira, em cima dela músicos e instrumentos – percussão, apitos etc. – tudo ao vivo. O uso dos sons é preciso, eficiente. Mínimo, forte.
Como sempre o começo é difícil – porque não se vale de recursos habituais (banais/fáceis) para ganhar a plateia – Aos poucos, sem pressa, a segurança artística e técnica vai trazendo todo mundo pra dentro do palco.
Nesse sentido, com relação à estrutura narrativa, me perdi um pouco no vai e vem da estória dentro da estória, nos diversos tempos narrativos.
E aproveito pra registrar:
– quando no final o dragão diz que o menino conseguiu realizar a última tarefa ele fala
– Vi que existe amor (mais ou menos isso…)
Eu teria entendido melhor se ele tivesse dito:
– Vi NESSE DESENHO que existe amor…
Achei que os comentários/cacos – tirados do cotidiano da gente – estão todos ótimos, mesmo que alguns sejam mais pros adultos entenderem – porque não? – Fiquei pensando:
– Não gosto de histórias” dito pelo Rato, repetido algumas vezes em brincadeira com a borboleta – isso faz parte dos comentários recados? Achei meio esquisito…
– não gostei da solução do arroz brotando no final, não tem muita força expressiva, acho…
A lanterna também poderia ser melhorzinha
Se eu pudesse, assistiria a todos os espetáculos do Dragão de Fogo pra anotar as falas das crianças durante a encenação, material muito importante pra se investigar como recebem o que é novo pra elas e como é muitas vezes surpreendente o que dizem.
Também acho que isso ajuda a aprofundar a proposta, a encontrar o que vocês trazem, uma ação artística e estética pra crianças. Como vocês atores se prepararam pra isso. Observei diversas escolhas e caminhos, e também como a estória e a plateia foram preenchendo e arredondando as atuações de vocês: a borboleta/dragão encontrou no final uma fluência, uma voz, uma respiração bonita de ver, encantadora força cênica. Pode ir muito mais longe ainda.
O Rato… no final era uma maravilha observar a mobilidade da sua máscara facial, parecia um desenho animado de uma vivacidade incrível. Parece que foi esquentando: no começo eu ainda via o ator às voltas com sua composição, (- agora ele inventou isso-, eu pensava), parecia alguma dificuldade, alguma coisa segurando, sei lá o que mas, aos poucos… fiquei apaixonada pelo personagem e pela maestria técnica do ator. E pela verdade!
O menino desenhista é adorável, conquista todo mundo, e o ator com sua alma linda pode trabalhar mais o que é uma criança pra ele
(ninguém perguntou, mas ela já foi pegando amizade e dizendo o que pensa, a metida…)
E finalmente
Penso bastante e investigo as relações entre arte narrativa e teatro, foi muito bom rever e desconstruir (detesto esses termos de moda…) muitas coisas: ainda acredito que é importante tratar de esmiuçar especificidades, pra benefício dos próprios contadores que em geral não tem ideia do que estão fazendo. Não vou me estender, adoraria conversar sobre esse tema.
Quero dizer que a palavra continua soberana no espetáculo de vocês, a qualidade fundamental da tradição simbólica do relato ancestral e sobretudo a inventividade que também é característica das culturas tradicionais, o encontro dentro da vida que faz sentido, que me fez voltar pra casa e começar a escrever tudo isso pra vocês.
Pode não servir pra grande coisa, mas escrever essas ressonâncias e repercussões foi para mim uma alegria e um privilégio.
Meu maior agradecimento,
Regina Machado