indio guarani

“a gente não respeita o que não conhece”
velho sábio Xavante

 Essa tarde de sabenças foi um encontro verdadeiro ao redor de uma fogueira imaginária para conversarmos sobre os povos originários da nossa terra: suas singularidades, como vivem, suas lutas, o que sonham e principalmente suas histórias.

Para colocar lenha nessa fogueira, foram convidados três especialistas, militantes, conhecedores da profundidade e importância da tradição indígena brasileira: Angela Pappiani, Ailton Krenak e Jera Guarani.

Os convidados ficaram impressionados com as mais de 100 pessoas que se juntaram para ouvir as histórias e cantos sagrados dos povos indígenas.

Angela Pappiani

Angela abriu o encontro contando um pouco da sua trajetória: seu avô anarquista, analfabeto que contava muitas histórias de índios – deles caçando na mata, descendo o rio, dormindo na rede – tantas imagens que povoaram a infância da jornalista que escolheu essa profissão com o objetivo de viajar e contar histórias.

Desde a década de 80, Angela estabeleu uma parceria que vem sendo construída com muita confiança, troca genuína de saberes e respeito. Com o intuito de criar uma ponte entre as comunidades indígenas e a sociedade brasileira, valorizando e fortalecendo a identidade cultural desses povos, Angela produziu em parceria como povo Xavante da Terra Indígena de Pimentel Barbosa o livro Wamrémê Za’ra – Nossa palavra/  Mito e história do povo Xavante (Ed. Senac/98), o CD Etenhiritipá – cantos da tradição Xavante, os documentários A’uwê Uptabi – o povo verdadeiro e Estratégia Xavante e o projeto Rito de Passagem, em parceria com a banda Sepultura (Roots) e com o músico Ramiro Musotto.

No Boca do Céu tivemos a oportunidade de conhecer de perto dois livros que compõem o projeto Histórias da Tradição coordenado por Angela. Os livros são Ynyxiwè, que trouxe o sol e outras histórias do povo Karajá (80 páginas) e Aihö’ubuni wasu’u – o Lobo Guará e outras histórias do povo Xavante (96 páginas). Ambos possuem encarte de pôster colorido/CD e apresentam mitos contados, em forma literária, pelos indígenas, detentores dos direitos autorais das obras.

Depois de apresentados os livros, uma pergunta orientou nossa conversa:

De onde vêm essas histórias?

Na cultura Xavante e também em outras culturas de tradição oral, as músicas e as histórias são trazidas nos sonhos pelos ancestrais. Algumas pessoas sonham com músicas e histórias que, depois de apresentadas ao coletivo, são assumidas como uma ferramenta de poder.

Ailton Krenak

Na opinião de Ailton Krenak, as Histórias são universais, elas vêm de algum lugar transcendente e, de vez em quando, somos presenteados por fluxos dessas narrativas que chegam até nós em sonhos. Assim como as músicas, quando alguém sonha com uma narrativa, é possivel que os parentes, irmãos verifiquem os sinais que aqueles sonhos revelam para quem sonhou e/ou para a comunidade. Quem estava presente? A onça? O jabuti? O gavião, quem te deu os sonhos? Quem foi o veículo?

É o coletivo que irá validar se aquele sonho trouxe uma cantiga de cura, de prosperidade, de fartura, se ele é realmente um dom que alguém foi recebedor e doador para a humanidade.

Angela nos disse que os velhos, anciões, contadores de história estão indo embora, morrendo e que cabe aos jovens de hoje conhecer essas histórias de poder, disseminá-las, mantê-las vivas na tradição.

Angela observa que, com a chegada de missões religiosas, de escolas, da luz elétrica e da televisão nas aldeias, infelizmente, mesmo nos lugares onde a tradição tem força (nos rituais e na língua) encontramos no fim do dia toda a comunidade conectada à televisão.

Os jovens das aldeias apreciam muito e lançam mão dos recursos tecnológicos para suas produções artísticas. Angela envolveu esses jovens para gravar as histórias dos velhos da aldeia a fim de criar um produto cultural (livro e CD) com as narrativas coletadas; também os envolveu na produção das ilustrações e edição dessas narrativas. Todo o processo focalizou a valorização das histórias e do papel dos velhos, bem como a formação de um acervo em áudio e vídeo trazendo o pensamento dos povos indígenas com toda sua força, beleza e profundidade.

Ailton Krenak também se mostrou esperançoso com o potencial desse tipo de ação cultural (que se utiliza das novas tecnologias) para que as crianças e jovens se reconectem com a tradição de seus antepassados, pelo que é verdadeiro na herança cultural dos ancestrais.

A tarde terminou com a apresentação de Jera Giselda Guarani e do Coral da aldeia M’bya Guarani Tenondé Porã, suas crianças e adolescentes fecharam o encontro brincando, dançando e cantando canções sagradas dos Guarani.

Jera em sua fala

Jera é uma das líderes da aldeia, localizada na cidade de São Paulo, no bairro de Parelheiros, onde vivem aproximadamente mil pessoas. Tenondé Porã significa “Belo futuro”; a aldeia sobrevive em um bairro de periferia e empreende uma luta para ampliar os perímetros da terra Guarani. A língua materna de seus habitantes é o guarani, seu principal símbolo de cultura; além da língua, os indígenas mantêm outras tradições, como a dança, o canto e a religião.

A líder Jera respondeu a questões sobre a luta pela ampliação do território Guarani, uma briga que já tem 30 anos. Em 2012, os índios conseguiram que a FUNAI reconhecesse seu direito a um pedaço de terra maior, mas o processo está parado desde então no Ministério da Justiça, que precisa assiná-lo para que a demarcação seja feita.  Além da Tenondé Porã, outras aldeias em São Paulo aguardam a assinatura do ministro José Eduardo Cardoso. Em 2014, uma série de atos para reivindicar a assinatura de Cardozo está sendo organizada. Jera agradeceu a pergunta e relatou a luta de seu povo, convidando os presentes para se unirem a ele no próximo ato.

A apresentação dos índios sensibilizou as pessoas, encantadas com sua simplicidade e verdade. Jera convidou-as para dançar e brincar com eles; grande parte do público aceitou o convite e se divertiu com as crianças.

Jera e meninas

Foi um final festivo para uma tarde em que as pessoas presentes puderam conhecer um pouco mais sobre diferentes culturas indígenas brasileiras, que, apesar de distintas, apresentam uma raiz comum: a luta para preservar as tradições milenares dos primeiros povos de nossa terra. Um dos principais instrumentos dessa luta é o conhecimento, é levar os não índios a conhecerem o imenso patrimônio vivo nas aldeias indígenas do país, para que percebam a importância de sua preservação.

As narrativas indígenas relatam as histórias desses povos e precisam ser contadas. Abrir espaços como este, para ouvir as narrativas e conversar com os índios sobre suas sabenças, é fundamental para que as pessoas conheçam as primeiras nações de nossa terra e, em decorrência disso, as respeitem em suas dimensões éticas, sociais, religiosas, filosóficas e políticas.

 sabencas indigenas