Isto também passará

voltar aos contos 3 de abril de 2020

 

Um homem, depois de uma longa viagem pelo deserto, por fim chegou à civilização. O povoado aonde chegou chamava-se Colinas Arenosas, e era quente e seco. Não havia muita vegetação, a não ser o pasto para o gado e alguns arbustos. As vacas eram o principal meio de vida para as pessoas de Colinas Arenosas.

O homem perguntou educadamente a uma pessoa que ia passando se havia algum lugar onde poderia encontrar comida e hospedagem para aquela noite.

– Bem, – disse o aldeão, coçando a cabeça – não temos um lugar assim no povoado, mas tenho certeza de que Shakir ficará encantado de brindá-lo com sua hospitalidade essa noite.

E indicou-lhe o caminho para o rancho que era a propriedade de Shakir, cujo nome significa “o agradecido”.

No caminho para o rancho, nosso homem deteve-se junto a um pequeno grupo de anciãos que estavam fumando seus cachimbos, para que lhe confirmassem a direção. Por eles ficou sabendo que Shakir era o homem mais rico do lugar. Um dos homens disse-lhe que Shakir era dono de mais de mil vacas. E isso era mais do que a riqueza de Haddad, que vivia no povoado vizinho.

Pouco depois, o homem estava parado em frente à casa de Shakir, admirando-a. Shakir, que era uma pessoa  amável e hospitaleira, insistiu que o viajante passasse alguns dias em sua casa. A esposa e as filhas de Shakir eram igualmente amáveis e deram ao homem tudo de melhor. Ao final de sua estadia, ainda lhe entregaram uma grande quantidade de comida e água para sua viagem.

Em seu caminho de volta ao deserto, o homem não podia deixar de perguntar-se sobre o significado das últimas palavras de Shakir no momento da despedida. O convidado havia dito:

– Agradeça a Deus pela sua riqueza.

– Dervixe – respondera Shakir, – não se engane pelas aparências, pois isto também passará.

As palavras de Shakir ocupavam sua mente, e não tinha certeza se entendia completamente seu significado. Até que, depois de um tempo, fechou a porta a esses pensamentos.

Assim passou mais cinco anos, viajando por terras distantes, conhecendo novas pessoas e aprendendo com suas experiências no caminho. Cada nova aventura oferecia uma nova lição a ser aprendida.

Um dia, o dervixe encontrou-se novamente em Colinas Arenosas, o mesmo povoado onde havia parado alguns anos antes. Lembrou-se de seu amigo Shakir e perguntou por ele.

– Está vivendo no povoado vizinho, a dez milhas daqui. Agora trabalha para Haddad – respondeu um homem do lugar.

O viajante, surpreso, recordou-se que Haddad era outro homem rico da região. Contente com a ideia de voltar a ver Shakir outra vez, apressou-se para ir logo ao povoado vizinho. Na maravilhosa casa de Haddad, o viajante foi bem recebido por Shakir, que agora parecia muito mais velho e estava vestido com roupas muito simples.

– O que lhe aconteceu? – quis saber o viajante.

Shakir respondeu que uma enchente, três anos antes, o havia deixado sem vacas e sem casa; assim, ele e sua família haviam se tornado servidores de Haddad, que sobrevivera à enchente e agora desfrutava da posição de homem mais rico da região. No entanto, esta mudança de sorte não havia alterado o caráter amistoso e atento de Shakir e sua família. Cuidaram amavelmente do viajante em sua cabana durante dois dias e lhe deram água e comida antes que partisse.

Quando estava indo embora, o convidado disse:

– Sinto muito pelo que aconteceu a você e sua família. Sei que Deus tem um motivo para tudo o que faz.

Shakir lhe respondeu:

– Isto também passará.

A voz de Shakir ficou ressoando como um eco nos ouvidos do viajante. O rosto sorridente do homem e seu espírito tranquilo não abandonavam seu pensamento.

– O que será que ele quer dizer com essa frase desta vez?

O viajante agora sabia que as últimas palavras de Shakir em sua visita anterior haviam se antecipado às mudanças que ocorreram. Mas desta vez, perguntava-se o que poderia justificar um comentário tão otimista. Assim, deixou-o de lado mais uma vez, preferindo esperar a resposta.

Passaram-se meses e anos, e o dervixe, que já estava ficando velho, seguiu viajando sem nenhuma intenção de parar. Curiosamente, suas viagens sempre o levavam de volta ao povoado onde vivia Shakir.

Desta vez, demorou sete anos para voltar. Nessa altura, Shakir já estava rico outra vez. Vivia agora na casa principal da propriedade de Haddad, e não mais na pequena cabana.

– Haddad morreu há dois anos – explicou Shakir, – e como não tinha herdeiros decidiu deixar para mim sua fortuna, como recompensa pela lealdade do meu serviço.

Ficou lá como convidado durante dois dias, e depois partiu de novo em viagem. A despedida de seu amigo, desta vez, não foi diferente das outras. Shakir repetiu sua frase favorita: “Isto também passará”.

Depois de viajar pela Arábia e a Índia, o dervixe viajante decidiu passar mais uma vez por Colinas Arenosas para visitar seu amigo Shakir, mas em vez de encontrar seu amigo, apontaram-lhe um humilde túmulo com a inscrição “Isto também passará”.

O viajante ficou ainda mais surpreso do que das outras vezes, quando Shakir havia pronunciado essas palavras.

– As riquezas vêm e vão – pensou o viajante –, mas como é que um túmulo pode mudar?

A partir de então, o viajante passou a ter o hábito de visitar o túmulo do seu amigo todos os anos, e passava algumas horas ali meditando.

No entanto, em uma de suas visitas, viu que o cemitério havia desaparecido, arrasado por uma enchente. O dervixe permaneceu durante horas nas ruínas do cemitério, olhando fixamente para o chão.  Finalmente, levantou a cabeça para o céu e então, como se descobrisse um significado mais elevado, assentiu com a cabeça em sinal de consentimento e disse: “Isto também passará.”

Quando esse homem ficou velho demais para continuar viajando, decidiu se assentar num lugar e viver tranquilamente o resto da sua vida. Conforme os anos foram passando, o ancião dedicava-se a ajudar aqueles que se aproximavam dele, aconselhando-os e compartilhando sua experiência com os mais jovens, e assim se tornou muito conhecido.      

Finalmente, sua fama chegou até o conselheiro do rei, que estava buscando alguém de grande sabedoria. A situação era a seguinte: o rei desejava que fabricassem para ele um anel. O anel tinha que ser especial; deveria ter uma inscrição de tal maneira que quando o rei se sentisse triste, olhasse para o anel e ficasse contente, e se estivesse feliz, deveria olhar para o anel e se entristecer.

Foram contratados os melhores joalheiros, e muitos homens e mulheres se adiantaram dando sugestões com relação ao anel, mas o rei não gostou de nenhuma delas. Então, o conselheiro escreveu para o velho viajante explicando-lhe a situação, pedindo sua ajuda e convidando-o ao palácio. Sem deixar sua casa, o dervixe enviou sua resposta.

Poucos dias mais tarde, fabricaram um anel com uma esmeralda e entregaram-no ao rei. O monarca, que por vários dias estivera deprimido, colocou o anel no dedo com má vontade e o olhou, soltando um suspiro de decepção. Logo começou a sorrir e pouco depois estava rindo às gargalhadas.

No anel estavam inscritas as palavras: “Isto também passará”.

 

 


 

Referência: Era uma vez….os contos como terapia. Instituto Girasol Brasil, RJ, 2006. Conto da tradição oral, publicado em português neste livro.

Imagem: Júlia Grillo