Convidados 2018: Nacer Khémir (Tunísia/ França)
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Nacer Khémir é um artista da cultura moderna árabe. É preciso tempo e espaço para se debruçar sobre sua obra que abrange diversas linguagens: poesia, romance, escultura, pintura, caligrafia, ilustração, cinema (diretor e ator), escrita, narração de histórias. Propositalmente a narração de histórias é aqui citada por último, pois Nacer irá nos apresentar seu modo de narrar que é permeado por todos os outros caminhos artísticos que ele percorre, caminhos que se encontram e constroem novas paisagens a serem reveladas e contadas.
Nasceu em Komba, Tunísia, país localizado ao norte da África e habitado pelo deserto do Saara em 40% de sua extensão. Não por acaso, em sua trajetória no cinema apresenta a “Trilogia no Deserto”, composta pelos filmes: Andarilhos do Deserto (1986), O Colar Perdido da Bomba (1992) e O Príncipe que contemplou sua alma (2005). Dentro desta trilogia ele apresenta uma memória narrativa da cultura tradicional árabe. Nacer encontrou no cinema uma outra forma de contar histórias, contar histórias é um ofício especialmente estimado por ele. As narrativas preservam a memória de sua tradição ao mesmo tempo que são alimento para a resistência e sobrevivência de seu povo. Entre diversas preciosidades existentes nesta trilogia, e que é extremamente significativa para o universo na narração de histórias, podemos ressaltar a fala de um mestre para seu discípulo em caligrafia árabe: a palavra é o elo entre o visível e o invisível. Uma trilogia visivelmente permeada por elementos das Mil e Uma Noites, alicerce da trajetória de Nacer Khémir como contador de histórias.
Fernando Mendonça, em seu artigo O cinema-parábola de Nacer Khemir, de 2002, cita trechos de uma entrevista com o contador de histórias:
“Nele [o deserto], pode-se apenas errar, e o tempo que se passa nada deixa atrás de si, é um tempo sem passado, sem presente, tempo de uma promessa que só é real no vazio do céu e na esterilidade de uma terra nua (…)”
“O deserto é o fora, onde não se pode permanecer, já que estar nele é sempre já estar fora.”
Publicou, no ano de 1984, Le conte dos conteurs (O conto dos contadores). Tem outros livros como L’alphabet des sables (O Alfabeto de areia). Escreve também para crianças, estes livros têm como característica apresentar o texto em francês junto à caligrafia árabe.
Entrevista:
Você faz muitas coisas, é cineasta, calígrafo, escritor, contador de histórias, será que existe um fio condutor que reúne todas essas atividades?
Nacer Khémir: “Eu trabalho sobre o mesmo tema, o tema do amor em todas as linguagens artísticas que pratico. É um tema que atravessa todas essas artes. E isso me permite enriquecer uma pela outra, já que as artes são linguagens diferentes que articulam o tema de forma diferente dependendo do meio empregado, da natureza de cada matéria, etc… Por isso, olho de forma diferente a mesma coisa e não tenho a impressão que existe uma verdade em algum lugar. Pelo contrário, são pequenas verdades que se juntam.
O conto é a arte do efêmero. É uma arte bastante estranha porque de uma forma doce ela reproduz o nascimento, a vida e a morte. A vida é o amor. É também a arte do equilibrista. Arte de alguém que está num fio sob o risco de cair. Se não há esse perigo, a coisa vira espetáculo. E o contador de histórias não faz espetáculo. Pois o conto é a arte da palavra nua, ou seja, o teatro não está diante de você, ele está em você. Antoine Vitez dizia que o contador de histórias instala seu próprio teatro dentro de cada um. Logo, naturalmente a história é como uma embarcação que vamos pegar. E, consequentemente, depende do mar e daquele que está dentro do barco. Se o mar está calmo ou se está agitado não será a mesma história. Eu tento, sempre que possível, me agarrar no olhar de alguém e contar só para ele. Encontrar a experiência xamânica, ou seja, a compreensão do tempo, o voo e as coisas que são aparentemente ilógicas, mas imediatamente lógicas uma vez que as aceitamos. A verdadeira arte de contar histórias realiza isso sem a dimensão religiosa.”
Henri Touati: “Eu assisti apresentações com Nacer onde, efetivamente, esse recurso de contar como que para apenas uma pessoa da grande plateia cria um fenômeno capaz de fazer cada um na sala ter a impressão que é com ele que o contador de histórias fala. A relação com cada um é a mesma relação com todo mundo presente porque há um acesso a todos através de cada um. Gosto muito do slogan “não se conta a todo mundo, se conta a cada um”, pois ilustra bem essa ideia. E é exatamente isso que o Nacer faz.”
A sua origem é tunisiana, as suas principais fontes de inspiração vem da cultura árabe-muçulmana?
Tudo isso se reúne na temática do amor. Que seja sufi ou mesmo as mil e uma noites, até mesmo no trabalho com a caligrafia sobre os nomes do amor. É o tema que os religa.
O que te inspira nessa cultura? É a espiritualidade ou existe outras fontes de inspiração?
Para compreender essa estética é preciso passar pelo sufismo. Toda a estética árabe-muçulmana está no sufismo. Para compreender a sociedade na sua dimensão mais profunda é preciso ler O Livro das Mil e Uma Noites. Trata-se de uma cartografia da memória e do céu. E um ilumina o outro. Quando eu pinto, isso me esclarece sobre a escrita e vice-versa.
Eu não me relaciono unicamente com as palavras transformando-as numa história. O fato de mudar de arte, uma ilumina a outra e eu não as sinto da mesma maneira. Além do mais, por esse caminho, eu escapo da aprendizagem escolar que pode, às vezes, cristalizar o pensamento num modelo. Afinal, para cada sentido existe uma linguagem. Fato que faz dessa experiência uma forma de desenvolver os sentidos.
Você participou do movimento da « Renovação do Conto » nos anos 70?
A minha glória foi ter contado na casa de Antoine Vitez durante um mês. Tive a impressão que, nessa época, o conto estava a caminho de alcançar os seus méritos. Porém, muito rápido, ele tomou também o caminho reverso, o retrocesso que é o espetáculo. Pois, naturalmente, se dramatizamos o conto como num espetáculo, nós acabamos pior que qualquer espetáculo. Os contadores de histórias tem uma mágica que é a de contar. Trata-se de uma arte antiga e é, ao mesmo tempo, uma das artes mais modernas, uma vez que tudo se passa no nosso cérebro onde, entre as articulações mais fortes — nossas dores como nossos prazeres — está a palavra. Portanto, é tanto uma arte primeira quanto uma arte do futuro. Evidentemente, não é uma arte da representação, mas uma arte da apresentação. Não há nada mais evidente também de que somos uma viagem celular que vem do início da criação. Nossa existência é um continuum da existência. E entre o que mais nos consola nas histórias é a sensação dessa viagem. O conto oferece esse sentimento. E tem ainda, o fato de que não sabemos de onde vem os contos. Essa ligação nos reconcilia com tudo. O mundo imaginário é um mundo que nos salva da tristeza.