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Convidados 2018: Pépito Matéo (França)

voltar às notícias 22 de março de 2018

 

A língua afiada de Pépito Matéo oscila entre o humor e a poesia para melhor tocar o coração. Ele faz parte desses artistas “indispensáveis” capazes de dizer a loucura do mundo guardando, ao mesmo tempo, esta delicadeza salvadora, este júbilo da palavra errante que alimenta e faz sentido.

Subversor de palavras, louco alegre, tagarela e luminoso, ele traça seu próprio caminho na floresta do imaginário contemporâneo.

Nasceu em 1948 em Romilly-sur-Seine onde se tricota expressões absolutamente populares para se consolar da guerra… Já deu o seu primeiro murmúrio de rebento na tentativa de tráfico de linguagem entre o interior da França do lado da mãe e os andaluzismos espanhóis do lado do pai de onde assimila rapidamente que são as “bacas” que dão leite.

De escolaridade primária e descontínua, ele atravessa a puberdade sonhando estar em outro lugar… Numa certa idade, ele se presta ao militantismo espontâneo, desce a rua e mete o nariz, por acaso, num teatro na Inglaterra, onde se pede que ele interprete um morto. Esse acontecimento, que teria aniquilado mais de um, marca uma reviravolta decisiva na sua autoaceitação… o que bem prova, como acentua a zeladora do seu prédio, que “não importa a longura da cobra, ela tem sempre um rabo!” …

Desde então, ele se dá conta de que o imaginário tem uma realidade e se lança em todos os papeis descobrindo Brecht, Vian, Ionesco, Adamov, Kafka, Artaud, Michaux, Dario Fo… retoma os estudos na faculdade com seus certificados de escolaridade primária…

A partir de 84, ele coloca um pouco de ordem nos seus sonhos para tentar encontrar um caminho na floresta densa da criação contemporânea, cria espetáculos para pequenos e grandes, torna-se contador de histórias com zelo e teimosia, defende uma tese de doutorado consagrada ao contador de histórias e ao teatro moderno… escreve e conta com um músico e torna-se responsável por uma disciplina sobre a Arte da Palavra no curso de Artes Cênicas da Universidade de Paris 8…

Desde os anos 90 participa de todos os grandes encontros em torno da palavra, tanto na França como no exterior. Conta igualmente em espanhol e publica artigos em revistas francesas e estrangeiras, assim como contos de sua autoria.

 

Pépito Matéo por ele mesmo:

“Minha grande fantasia é ter uma sala onde poderia colocar todas as minhas coisas. Já que invento histórias, antes de mais nada, na minha cabeça, seria meu ateliê de alquimia onde poderia criar tudo o que quisesse. Sou um sonhador. Um sonhador desde pequenino. (…)

Eu nasci em Rommilly-sur-Seine, uma cidade onde se fabricava meias. Minha vó fazia a ligação das meias em pares, ela era paga por peça e todas as pessoas da cidade trabalhavam na fabricação desse gênero de vestimenta. Se vivia no ritmo das usinas, das sirenes de usinas e dos turnos 3 x 8. Se via os operários que saíam da usina com suas bicicletas. (…)

Meu pai trabalhava com frutas e legumes. Ele vinha da Espanha. Tinha vindo apenas com as suas mãos, como dizia. Sempre foi uma interrogação para mim, o meu pai. Ele sempre contava coisas da sua infância. E, enquanto crianças, isso nos fascinava. Era como uma espécie de mitologia. Mas de onde ele vem? E nós, de onde viemos? (…)

Fomos viver em Troyes. Meu pai me levava para ver as lutas nos ringues ou ao futebol, eu não conhecia o teatro, não conhecia os livros, não havia livros em casa, nem música. (…)

Meu desejo era sempre de me divertir em tagarelar, uma vez que eu era o caçula, um zero à esquerda, vivia no meio das irmãs mais velhas que tinham uma bela lábia. Minha mãe e minha vó falavam muito. Nasceram na minha cabeça duas coisas importantes: de uma parte, é preciso poder interessar os outros para se fazer escutar e, de outra parte, é que a palavra permite sonhos. (…)

Eu nunca estava realmente bem no real. Eu vivia em ambientes, afinal, desfavorecidos. Quando a gente inventava histórias, era melhor que o real. (…)

A partir de 15-16 anos, trabalhei como pintor de prédios. Um dia, querendo dar a minha volta ao mundo, fui para a Inglaterra aprender inglês. Ao me enganar de porta, caí numa apresentação de teatro. Quando se abre uma porta, pode nos acontecer muitas coisas. Era uma peça de Brecht. Estavam precisando de um morto. Perguntaram-me “Você quer fazer o morto?”. A Partir desse momento, ficou evidente para mim que a minha volta ao mundo passaria pelos tablados. (…)

Voltei para a França. Minha prima me chamou o interesse pela Universidade de Vincennes, uma faculdade saída de maio de 68, aberta aos não bacharéis. Matriculei-me numa pós em filosofia com meu certificado de ensino médio, e como havia um departamento de teatro muito forte, migrei para o teatro e fui até o doutorado.

Sempre me apareceu esta questão: a linguagem te engaja. Você se arrisca tomando a palavra. (…)

Não há demarcação entre o que você vive e o que você faz, o que você fabrica, mesmo se é teatro, sonho, é preciso que esse sonho corresponda a algo que é importante para você e que você tem o desejo de partilhar com os outros. (…)

Para mim, se a tradição existe, é porque justamente ela toma a forma do presente no curso do tempo de tal sorte que encontramos A Chapeuzinho Vermelho na China, na Itália, no continente africano sob formas diferentes. Não fui ninado por contos tradicionais. Eu cheguei a essa palavra contante pela imaginação. (…)

A liberdade do sonho é já em si, para mim, uma ferramenta de revolução e emancipação. (…)

Hoje estamos num mundo onde tudo é claro, temos as informações do mundo, tudo nos é dado, tudo é plano. Quando estamos diante de alguém que não fala muito bem ou que diz coisas que não estamos habituados a escutar, devemos abrir um caminho para ir até ele. (…)

O que me entusiasma hoje é esta questão: é preciso fazer um esforço para ir ao encontro do outro. (…)

O estranho e o estrangeiro são iguais. Meu pai, por exemplo, sua palavra era um pouco estranha, estrangeira, o que fazia as suas crianças rirem muito. Ele dizia, às vezes, palavras que traziam duas imagens. Eu conservei esta questão de que as palavras diziam outra coisa para além do que elas queriam dizer. (…)

Meu pai nunca tinha ido à escola, eu mesmo não sabia se me encaixava. Penso que muitos jovens, principalmente os de famílias de imigrantes, sentem que não devem trazer nada da sua cultura para a escola e isso é um grande erro: é preciso trazer o que a gente é. (…)

Assim que você chega num bairro popular e começa a contar uma história, eles mesmos já tomam a palavra e começam a contar, eles riem, você sente que isso lhes faz bem porque eles tomam distância com relação as suas próprias dificuldades; o real se torna quase imaginário. (…)

Quando eu dava oficinas na prisão as palavras tinham uma importância enorme. Elas empurravam os muros. Os presos se espantavam muito com o fato de que a sua fala era escutada e que as palavras tinham peso. Tem aqueles que se revelam através disso.”

 
Tradução de trechos de uma entrevista editada e transcrita por Marie-Anne Divet e Michel Rouger