O sapateiro astrólogo

voltar aos contos 27 de janeiro de 2016

Na cidade de Isfahan vivia um pobre sapateiro chamado Ahmed, casado com uma mulher muito invejosa e cheia de ambição.

Todos os dias sua mulher ia ao Haman, a casa de banhos públicos e sempre encontrava alguém que lhe dava motivos para ficar morta de ciúmes. Uma vez ficou observando uma mulher ricamente vestida, com joias magníficas, rodeada de muitas criadas.

Perguntou de quem se tratava e lhe disseram que aqueça era a mulher do astrólogo chefe do rei. Imediatamente ela pensou:

– Claro, um astrólogo. É isso que meu desgraçado Ahmed deve tornar-se, para que eu possa ter tudo o que aquela mulher tem.

Voltou para casa decidida e assim que encontrou o marido, foi logo dizendo:

– Não fale comigo, nem se aproxime de mim antes de ter se tornado um astrólogo da corte.

– Você tem que abandonar essa profissão miserável de remendar sapatos. Eu só serei feliz quando ficarmos ricos.

– Astrólogo? Disse Ahmed horrorizado.

Mas que qualificação tenho eu para ler as estrelas? Será que você enlouqueceu?

– Não sei e nem quero saber como vai conseguir isso, mas se até amanhã você não começar sua nova profissão, volto pra casa do meu pai e peço o divórcio, pode estar certo disso, respondeu a mulher sem pestanejar.

O sapateiro ficou muito atrapalhado. Não podia suportar a ideia de perder a esposa, ele tinha que fazer alguma coisa, mas como?

Saiu de casa, comprou um mapa do zodíaco, um astrolábio e um calendário astronômico.

Para isso teve que vender todas as suas ferramentas de sapateiro. Assim que chegou em casa com os novos instrumentos, percebeu que a única coisa que tinha que fazer era dar um jeito de ser vem sucedido como astrólogo. Foi então para a praça da cidade e começou a anunciar.

– Venham todos! Venham conhecer o mais novo astrólogo da praça. Tenho respostas para tudo. Conheço o sol, a lua, as estrelas e os doze signos do zodíaco. Sou capaz de dizer tudo o que está para acontecer.

Acontece que naquele momento, o joalheiro do rei passava por ali, muito nervoso, pois havia perdido uma das joias imperiais, que tinha sido entregue a seus cuidados para ser polida. Um rubi enorme, de valor inestimável, que havia sumido misteriosamente. Ele sabia que muito bem que se não encontrasse a joia, teria que pagar com apropria vida.

Andando pela praça, viu uma pequena multidão em volta de Ahmed e perguntou o que estava acontecendo.

– É o mais novo astrólogo, o sapateiro Ahmed, que está proclamando suas habilidades, respondeu um homem com um riso de deboche. Imagine, ele está dizendo que é capaz de adivinhar o que há para se saber.

Era tudo o que o joalheiro precisava ouvir naquele momento. Foi até onde estava Ahmed e cochichou no seu ouvido:

– Se é verdade que entende mesmo da sua arte, descubra para mim onde está o rubi do rei e lhe darei 200 moedas de ouro. Mas se você fracassar, esteja certo que mandarei matá-lo.

Ahmed ficou atordoado. Pôs a mão na cabeça pensando na sua mulher que o havia colocado naquela enrascada, disse:

– Ah, mulher! Você é mais venenosa para a felicidade de um homem que a mais vil das serpentes!

Na verdade, a joia tinha sido escondida pela esposa do joalheiro. Como ela tinha ficado com a consciência pesada por causa do roubo, ordenou a uma escrava que seguisse o marido onde quer que ele fosse. Quando a escrava ouviu o novo astrólogo falar de uma mulher tão venenosa, quanto uma serpente, pensou que ele tinha adivinhado o que acontecera e correu para casa.

– A senhora foi descoberta, querida ama, ela disse quase sem poder respirar. Foi descoberta por um detestável astrólogo que está lá na praça. Vá logo falar com ele e peça-lhe para não contar nada ao seu marido, senão a senhora estará perdida, com certeza.

A mulher cobriu-se com seu véu e foi ao encontro de Ahmed. Sem conseguir disfarçar seu nervosismo, ela suplicou:

– Por favor, salve minha honra e minha vida e lhe direi tudo.

– Dirá o que? Perguntou Ahmed.

– Nada que você já não saiba, ela soluçou. Apenas eu preciso lhe dizer porque roubei o rubi. Fiz isso para castigar meu marido porque ele me trata com muita brutalidade. Mas você, homem maravilhoso de quem nada pode ser escondido, diga-me o que devo fazer para que esse segredo não seja descoberto. Juro que farei tudo o que for necessário, se você não contar nada ao meu marido.

Ahmed pensou rapidamente e disse:

– É verdade, mulher. Sei tudo o que você fez, mas compreendo sua situação. Assim vou lhe dar uma chance de se salvar. Volte para casa e ponha o rubi debaixo do travesseiro do seu marido. Faça isso e esqueça essa história para sempre.

A mulher virou as costas e Ahmed seguia-a de longe. Mal chegou em casa, ela fez exatamente o que prometera. Ahmed, logo depois, apresentou-se ao joalheiro dizendo:

– Fiz todos os cálculos necessários e de acordo com o sol, a lua e as estrelas, nesse exato momento, posso afirmar sem sombra de dúvidas que o rubi se encontra debaixo do seu travesseiro, nobre joalheiro real.

Mal podendo acreditar no que ouvia, o joalheiro foi imediatamente até seu quarto e voltou alguns minutos depois, com um enorme sorriso nos lábios. Abraçou Ahmed como se fosse um irmão e deu-lhe uma bolsa com as 200 moedas de ouro prometidas.

Ahmed voltou para casa muito agradecido. Pensou que agora sua mulher ficaria satisfeita e ele não teria mais que desempenhar aquele papel. Mas estava completamente enganado.

– Nem pense em desistir, ela disse quando soube da novidade e recebeu todo aquele dinheiro.

Esta foi apenas sua primeira aventura no seu novo modo de vida. Quando seu nome ficar conhecido, logo será convocado para a corte, que é onde eu quero estar o mais rápido possível.

O infeliz Ahmed protestou dizendo que aquilo não fazia sentido, além de ser muito arriscado. Como podia esperar um outro golpe da sorte como aquele? Perguntou. Mas sua mulher desmanchou-se em lágrimas e ameaçou-o outra vez com o divórcio.

No dia seguinte, lá estava ele novamente na praça.

– Como astrólogo que sou, posso ver tudo graças ao poder que me foi dado pelo sol, pela lua e pelas estrelas, ele falava alto, para quem quisesse ouvir.

Formou-se uma pequena multidão à sua volta, bem como no dia anterior. Uma dama coberta com seu véu passava por ali acompanhada por uma escrava. Ela escutou as pessoas comentando o sucesso de Ahmed no dia anterior e mais uma dúzia de outras histórias que de fato nem haviam acontecido. A dama abriu caminho até Ahmed e lhe disse:

– Peço-lhe a resposta para esse enigma.

Onde estão meus brincos e meu colar, que ontem guardei num lugar que não é o do costume? Não ouso falar ao meu marido sobre esta perda, pois ele é um homem muito ciumento e poderia pensar que os dei para um amante. Por favor, grande astrólogo, diga-me onde estão ou ficarei desonrada para sempre. Pelo serviço lhe darei 50 moedas de ouro.

Ahmed ficou mudo por um momento, vendo diante dele uma dama tão distinta puxando-o pela manga. Fechou os olhos, imaginando o que poderia dizer. Quando olhou novamente para ela, percebeu que parte do rosto estava descoberto – o que era muito impróprio para uma mulher de nível elevado – porque o véu havia rasgado provavelmente por causa de sua pressa ao atravessar a multidão. Ele se aproximou e disse em voz baixa:

– Senhora, olhe o buraco, olhe o buraco!

Ele se referia ao buraco aberto no véu, mas isso despertou uma lembrança naquela mulher. Com o rosto iluminado ela pediu a Ahmed que não saísse dalí e voltou correndo para sua casa, que não ficava longe. Lá no buraco da parede do seu banheiro, encontrou o colar e os brincos, ali mesmo onde os havia escondido no dia anterior, antes de tomar banho. Logo ela estava de volta à praça, com um outro véu e as 50 moedas de outro que entregou a Ahmed com mil agradecimentos. A notícia se espalhou e todos comentavam a mais nova prova de habilidade do sapateiro astrólogo. Mas isso também não foi o suficiente para a mulher de Ahmed. Ela não podia competir com a mulher do astrólogo da corte e assim continuou a exigir do marido que prosseguisse na busca de fama e fortuna.

No dia seguinte 40 cofres cheios de ouro e joias foram roubados do tesouro real. Funcionários do estado e o chefe da polícia mobilizaram-se para encontrar os ladrões, mas não tiveram êxito. Assim, dois servos foram enviados até Ahmed e lhe perguntaram se ele poderia resolver o caso.

Enquanto isso, o astrólogo do rei espalhava boatos mentirosos a respeito de Ahmed. Ele dizia que havia dado um prazo de 40 dias para que o sapateiro encontrasse os ladrões. Ao mesmo tempo profetizava que Ahmed seria enforcado, pois não era capaz de solucionar o problema dos cofres.

Ahmed foi levado à presença do rei, que lhe perguntou:

– Então, de acordo com as estrelas, quem é o ladrão?

– Meus cálculos levarão algum tempo, majestade, gaguejou Ahmed. Ainda é difícil dizer qualquer coisa, por enquanto posso afirmar apenas que não foi um, mas quarenta ladrões que roubaram o tesouro real.

– Muito bem, disse o rei. Onde estão e o que fizeram com o ouro e as joias?

– Peço-lhe 40 dias para poder encontrar a resposta, consultando as estrelas. Cada noite traz diferentes conjunções para seres estudadas, como vossa majestade deve saber…

– Eu lhe concedo esse prazo, falou o rei. Mas se no final dos 40 dias você não tiver a resposta, perderá a vida.

O astrólogo real ficou satisfeito e sorriu maldosamente por trás da barba, o que deixou Ahmed bastante inquieto. Ele voltou para casa arrasado.

– Veja só, minha querida, ele disse para sua mulher. Meu medo é que sua avidez tenha feito com que me restem apenas 40 dias de vida. Vamos aproveitar o melhor que pudermos esse tempo, gastando tudo o que ganhamos até agora porque quando esse tempo se esgotar, serei executado.

– Mas marido, nesse prazo certamente você vai descobrir os ladrões, usando o mesmo método que lhe foi tão útil para encontrar o rubi do joalheiro e as joias da mulher.

– Você está louca, ele disse, por acaso se esqueceu que os dois casos foram resolvidos graças à vontade de Allah. Jamais vou ser capaz de fazer esses truques outra vez, mesmo se vivesse 100 anos. A melhor coisa que temos a fazer é colocar um damasco numa vasilha a cada noite que se passar e quando completarem 40, saberei que devo morrer. Já que não sou bom em cálculos, esta será a maneira de saber o dia em que minha vida vai terminar.

– Seja corajoso, ela disse. Mesquinho e sem fé, isso é o que você é. Pense em alguma coisa durante o tempo em que for colocando o damasco na vasilha. Faça isso para que eu ainda possa me tornar tão enfeitada quanto a mulher do astrólogo chefe e possa estar na posição social a que tenho direito pela minha beleza.

Ela não disse nenhuma palavra de conforto para o pobre Ahmed, nada que apaziguasse o tumulto que se instalou no seu coração. Ela só tinha olhos para si mesma e para sua vitória pessoal sobre a mulher do astrólogo da corte.

Enquanto isso, os 40 ladrões, que se encontravam a poucos quilômetros da cidade, tinham recebido informações sobre as medidas tomadas para sua captura. Seus espiões relataram que Ahmed fora chamado pelo rei e dissera precisamente que eles eram 40. Temendo que ele descobrisse tudo a seu respeito, o chefe dos ladrões decidiu enviar um deles até a casa de Ahmed, tarde da noite para tentar escutar alguma coisa. Todos aprovaram o plano e, depois do pôr do sol, um dos ladrões colocou-se debaixo do terraço da casa do sapateiro, junto à parede. Ele ouviu Ahmed dizendo:

– Mulher, aqui está o 1º dos 40.

Na verdade, ele havia acabado de pegar o 1º damasco para colocá-lo na vasilha. Escutando suas palavras, o ladrão ficou apavorado e voltou correndo para o esconderijo. Contou aos outros o que de algum modo o sapateiro havia percebido sua invisível presença  através da parede da janela. Ninguém acreditou na sua estória e na noite seguinte dois ladrões foram enviados à casa de Ahmed. Completamente escondidos pela escuridão da noite, ouviram quando o sapateiro disse.

– Minha querida, essa noite temos aqui dois deles.

Com a mais absoluta certeza de que tinham sido descobertos, contaram tudo aos outros ladrões. Na noite seguinte, três homens foram enviados e assim por diante, noite após noite, eles escutavam Ahmed ir contando os damascos na vasilha, pensando que ele falava deles. Na última noite, todos estavam encostados na parede e ouviram claramente quando Ahmed disse:

– Pronto, mulher, o número está completo. Hoje todos os 40 estão aqui.

Não havia mais dúvidas, pensaram os ladrões. Ahmed nunca tinham olhado pela janela e mesmo que o tivesse feito, não teria sido capaz de vê-los, protegidos que estavam pela escuridão da noite.

– Vamos subornar o sapateiro astrólogo, disse o chefe do bando. Vamos oferecer-lhe parte do roubo, para que amanhã não nos denuncie à polícia.

Assim eles bateram à porta de Ahmed, pouco antes do amanhecer.

Supondo serem os soldados que tinham vindo buscá-lo a força, Ahmed veio tranquilo abrir a porta. Ele e sua mulher tinham gastado metade do dinheiro na boa vida e ele se sentia pronto par ir embora. Nem mesmo estava triste por ter que separar-se da mulher. E ela, para dizer a verdade, estava satisfeita porque ainda havia sobrado bastante dinheiro para ela.

– Sei muito bem porque estão aqui, gritou Ahmed. Eu já estou indo abrir a porta. Mas que maldade vocês estão para fazer, ele acrescentou enquanto saia de casa corajosamente.

– Homem maravilhoso, disse o chefe dos bandidos. Estamos convencidos de que você sabe porque viemos até aqui, mas será que não podemos tentá-lo com duas mil moedas de ouro para que você não diga nada sobre o assunto?

– Como eu posso não dizer nada? Então acham que vou me submeter a tamanha maldade e injustiça e ficar calado?

– Por favor, tenha pena de nós, disseram os ladrões e muitos jogaram a seus pés. Apenas salve nossas vidas e devolveremos todo o ouro que roubamos.

O sapateiro não tinha certeza se estava acordado ou sonhando, mas assim que percebeu que aqueles eram os ladrões, rapidamente assumiu um tom solene e falou:

– Homens miseráveis, vocês não podem escapar à minha percepção profunda, que chega ao sol e à lua e conhece cada estrela que há no céu. Seu arrependimento os salvou. Se devolverem os cofres, farei tudo que puder para interceder a seu favor junto ao rei. Peguem o tesouro e levem-no até o Haman. Junto à parede, cavem um buraco bem grande e enterrem lá os 40 cofres, sem faltar nenhum. Façam isso já, antes que as pessoas da cidade acordem. Se assim o fizerem, suas vidas serão poupadas. Caso contrário serão enforcados e a desgraça se abaterá sobre vocês e suas famílias.

Tropeçando, caindo e se levantando, o bando saiu em disparada.

Será que iria dar certo? Ahmed sabia que tinha pouco tempo para esperar e descobrir. Ele só tinha uma vida a perder e de qualquer forma, ainda estava em grande perigo.

Mas Allah é justo. Recompensas de acordo com seus méritos esperavam Ahmed e sua mulher.

Ao meio dia, Ahmed apresentou-se alegremente ao rei.

– Sua aparência é promissora, você traz boas notícias? Perguntou o rei.

– Majestade, respondeu o sapateiro. As estrelas permitirão apenas uma coisa ou outra: os 40 ladrões ou os 40 cofres do tesouro. Pode vossa majestade escolher?

– Seria lamentável não punis os ladrões, mas se tem que ser assim, escolho o tesouro.

– E posso ter vossa palavra que os ladrões serão perdoados?

– Sim, desde que os cofres estejam intactos.

– Então sigam-me, disse Ahmed saindo na direção do velho Haman. O rei e os cortesãos foram atrás dele e viram que durante o trajeto Ahmed olhava de vez em quando para o céu, fazia círculos no ar e murmurava coisas incompreensíveis. Quando chegaram na casa de banhos, ele apontou uma das paredes e pediu para que os servos ali cavassem, dizendo que o tesouro estava ali, intacto. Do fundo do seu coração esperava que fosse verdade.

E, de fato, em pouco tempo todos os 40 cofres foram descobertos, com o selo intacto.

O rei ficou tão contente que nomeou Ahmed astrólogo chefe da corte. E, mais, decretou que ele devia casar-se com sua única filha.

A bela princesa, linda como a lua na sua 14ª noite, ficou feliz pois já tinha visto Ahmed de longe e por ele havia se apaixonado.

A roda da fortuna tinha dado uma volta completa.

De madrugada, Ahmed barganhava com os ladrões. Ao anoitecer era dono de um palácio e marido de uma encantadora princesa que o adorava. Mas isso não mudou o seu caráter. Ele estava tão contente, vivendo como um príncipe, assim como ele havia sido quando era um pobre sapateiro. Sua antiga mulher, a quem ele já havia esquecido, saiu de sua vida e teve o castigo que merecia por sua fútil e insensível vaidade.

Assim a tapeçaria que é nossa vida, completada pelo grande desenhista.

Traduzido de
The cobbler who became na astrologer ( Persia), pag 192 in
Idries Shah. World Tales. London, Harcourt Brace Jovanovich, 1979.